Crítica e autocrítica — A consciência dialética da revolução

Este ensaio busca resgatar o papel revolucionário da crítica e da autocrítica no marxismo-leninismo, superando visões moralistas, burocráticas ou formalistas. Apresenta uma análise histórico-filosófica do “erro” nas diversas culturas e correntes de pensamento, consolidando um método dialético de crítica comunista, com base na tradição teórica de Marx, Engels, Lênin, Stálin e Enver Hoxha, articulado à experiência viva da militância no Brasil. É uma ferramenta formativa e organizativa para fortalecer o Partido e a revolução.

{getToc} $title={Conteúdo} $count={Boolean} $expanded={Boolean}

I. INTRODUÇÃO

O lugar da crítica e da autocrítica na vida revolucionária

A crítica e a autocrítica não são meras formalidades organizativas ou práticas subjetivas opcionais no interior do movimento revolucionário. Elas constituem, na tradição marxista-leninista, um princípio vital, um instrumento de transformação e uma condição de existência do Partido Comunista como vanguarda consciente do proletariado. Sem crítica, não há correção dos rumos; sem autocrítica, não há aprendizado histórico. A crítica é a forma através da qual o Partido confronta sua prática com sua teoria; a autocrítica, o método pelo qual seus quadros se reeducam a partir da contradição entre o ideal e o real.

No entanto, em muitas conjunturas e momentos históricos, o que deveria ser expressão do espírito revolucionário vivo se converteu em mecanismo formal, ritualístico, punitivo, vazio de conteúdo transformador. Ou se banaliza como auto-flagelação sem síntese, ou se corrompe em denúncia despolitizada, perdendo sua força revolucionária. Isso é resultado não apenas da pressão ideológica da sociedade burguesa sobre o Partido, mas também da falta de formação filosófica, moral e organizativa de muitos de seus quadros.

A tensão entre forma e conteúdo

Ao longo da história do Movimento Comunista Internacional (MCI), os períodos de maior vigor revolucionário coincidiram com a capacidade do Partido de utilizar a crítica e a autocrítica como práticas vivas, dialéticas e criadoras — nunca como formas petrificadas. Onde o conteúdo revolucionário se degenera e a crítica se torna só forma — vazia de análise concreta, de horizonte pedagógico e de transformação subjetiva e objetiva —, aí se abre espaço para o burocratismo, o cinismo, o moralismo pequeno-burguês e, inevitavelmente, o sectarismo ou o liquidacionismo.

Por isso, é tarefa de todo militante, dirigente ou simpatizante que queira servir à revolução com honestidade e profundidade, compreender a essência da crítica e da autocrítica como métodos vivos do materialismo dialético, superando as práticas meramente formais e reconstruindo, com base no acúmulo do movimento revolucionário, a nobreza moral e política desse instrumento.

Justificativa histórica, teórica e política

Este trabalho nasce da necessidade de sistematizar e oferecer ao conjunto da militância uma síntese histórica, filosófica e política sobre a função e o papel da crítica e da autocrítica na construção do socialismo e na consolidação do Partido Comunista como destacamento avançado da classe operária.

Ele não possui autor individual, pois é fruto de um longo acúmulo coletivo de experiências e elaborações. Baseia-se nos princípios do materialismo histórico e dialético desenvolvidos por Marx, Engels, Lênin, Stálin e Enver Hoxha, mas também nas reflexões e práticas acumuladas (seus erros e acertos) por gerações de militantes do Partido Comunista, do partido de massas, e de suas frentes de luta — juventude, mulheres, moradia, sindicatos e tantos outros espaços de luta concreta que contribuíram ativamente para a construção deste trabalho através de sua prática revolucionária cotidiana.

Este texto nasce como instrumento pedagógico e político, não como dogma. Pretende elevar o patamar do debate, superar o eterno recomeço, e permitir que cada camarada que nele se debruce possa partir de um nível superior de elaboração. Trata-se de um ponto de partida, nunca de chegada. Um convite à síntese, à reflexão e à ação.

Por isso, sua leitura e estudo são inseparáveis da prática coletiva — a crítica e a autocrítica aqui defendidas não podem ser compreendidas senão como expressões de um partido vivo, enraizado nas massas e em permanente transformação. 

II. A CONCEPÇÃO DO ERRO E DA VERDADE NA HISTÓRIA HUMANA

1. Egito e Mesopotâmia: erro como desvio da ordem cósmica

O conceito de erro — este desvio entre o querer e o acontecer, entre o dever-ser e o real — não nasce na consciência abstrata dos seres humanos, mas nas entranhas concretas de sociedades organizadas em torno da luta pela sobrevivência e da tentativa de dar inteligibilidade ao caos da existência. No mundo egípcio e mesopotâmico o erro aparece como ruptura da ordem — não do sujeito em relação ao mundo, mas do mundo em relação ao cosmos. Maat, no Egito, representa o princípio da harmonia universal, e o erro é o atentado contra essa harmonia. O direito consuetudinário, codificado por anciãos e sacerdotes, atua não como expressão de vontades individuais, mas como preservação da estabilidade cósmica. Não é o indivíduo que erra; é a comunidade que sofre as consequências do desvio — ou seja, ainda é um processo coletivo que se solidifica pelas respostas da natureza da influência humana.

Nas cidades-templo mesopotâmicas, o erro era um desequilíbrio que se manifestava em formas naturais: enchentes, pestes, colheitas frustradas. Daí a função mágico-religiosa da pena: restaurar a simetria perdida. O erro não é, pois, aprendizado, mas anomalia a ser expurgada. Tal concepção não permite historicizar a verdade nem dialetizar o real, mas apenas ritualizar o retorno à ordem primordial.

Contudo, é preciso reconhecer que esse pensamento ainda não é alienado no sentido moderno. Ele expressa a relação imediata entre ser humano e natureza, a indivisão entre produção material, norma e mitologia. O que lhe falta é o salto para a mediação crítica — o que a dialética materialista irá promover, milênios depois, o expurgo completo do papel mitológico, ao historicizar a forma e expor suas determinações sociais, destruindo o entendimento dos fenômenos naturais não como um conceito mitológico, mas como a confluência interdependente dos fenômenos da natureza e da sociedade atuando em harmonia e contradição ao mesmo tempo.

2. Grécia Antiga: O erro como destino (Hamartia)

Na tragédia grega, o erro (Hamartia, μαρτία) não é um simples equívoco individual; é a manifestação de uma contradição essencial entre a posição social de um sujeito e os limites objetivos do mundo ao seu redor. Édipo não erra porque é ignorante ou porque possui má-fé, mas porque sua condição de agente consciente entra em conflito com determinações que escapam à vontade. O erro trágico é, portanto, necessário, e seu reconhecimento é catártico: purga ilusões, reconcilia o ser humano com sua finitude e com a necessidade objetiva. Heráclito, com seu “o combate é pai de todas as coisas”, já intuía que não há ordem sem conflito, não há sabedoria sem a experiência amarga do erro.

Nesse sentido, a tragédia se opõe frontalmente à concepção moralista e subjetivista do erro. Ela desvela a estrutura objetiva da contradição, transformando o palco em espelho da totalidade social. A “culpa” é, então, apenas o nome dado à não coincidência entre os projetos humanos e as determinações históricas que os atravessam. A verdade trágica não absolve nem condena; revela. E ao revelar, educa: o erro, longe de ser apagado, deve ser vivido até o fim, como condição de sabedoria.

O pensamento trágico da Grécia é, pois, uma das formas mais elevadas da consciência pré-dialética do erro. Ele intui a necessidade da contradição, mas ainda a reveste com a roupagem do mito, da fatalidade e do pathos. A transição para a consciência efetivamente dialética só se dará com a superação do logos trágico pela ciência da história.

A passagem do pensamento oriental para a reflexão racional sistematizada na Grécia não representa uma superação linear e cumulativa, mas uma nova forma histórica de lidar com as contradições do mundo, surgida em condições materiais específicas: a formação da pólis, a divisão social do trabalho e o nascimento de uma aristocracia letrada. Neste contexto, o erro passa a ser compreendido não como elemento ontológico constitutivo da realidade, mas como falha do sujeito diante da razão universal. A questão não é mais a contradição em si, mas a ignorância diante dela. Surge então uma concepção de erro como “não saber” — e a verdade, como conhecimento que liberta.

Em Sócrates, temos a primeira formalização dessa ideia: a maiêutica não busca apenas transmitir um saber, mas revelar a ignorância escondida sob a aparência da opinião. Para ele, ninguém erra voluntariamente: o erro é sempre resultado de um falso saber. A virtude coincide com o conhecimento, e todo crime, toda injustiça, toda corrupção são efeitos de um saber aparente, não de uma vontade maligna. Esta concepção, apesar de ainda idealista, contém um germe profundamente pedagógico e revolucionário: se o erro é ignorância, é possível superá-lo pela formação, pela educação, pela filosofia como prática coletiva do saber.

Platão, por sua vez, radicaliza a dimensão idealista: o erro é afastamento da Ideia, sombra da verdade. O mundo sensível é em si mesmo uma queda, uma caverna de sombras. Aqui o erro passa a habitar a própria condição humana. Mas apesar disso, Platão conserva o horizonte da superação dialética: o movimento da alma em direção ao bem é também o caminho que supera o erro. A reminiscência, a dialética e a organização racional da república expressam esse processo.

Já Aristóteles, dando um passo na direção do real, define o erro como julgamento falso, inadequado à relação entre as formas e as substâncias, entre o universal e o singular. Sua teoria da prudência (φρόνησις) é uma tentativa de tornar o conhecimento do concreto acessível à prática, à ação. O erro, portanto, é também insuficiência da experiência, limitação das condições da prática. Aristóteles não nega a realidade, como Platão, mas tampouco a concebe como contraditória: o mundo é ordem, não movimento.

O papel do diálogo na superação do erro

Tanto em Sócrates quanto em Platão, o método privilegiado de acesso à verdade é o diálogo — não como conversa superficial, mas como combate de ideias, como interação rigorosa de posições contraditórias. O diálogo é a forma através da qual o erro se manifesta, mas também é por ele que o sujeito se educa, se transforma, se eleva. Herdeira disso, a concepção leninista da crítica interna no partido carrega esse espírito: o conflito de ideias é fonte de verdade, não de ruína.

Mas aqui emerge uma contradição fundamental: o diálogo só é frutífero se ambas as partes estão comprometidas com a verdade. Quando se transforma em instrumento de poder, quando o objetivo deixa de ser o saber comum e passa a ser o triunfo individual, ele degenera. E é precisamente nessa fenda que surgem os sofistas.

A sofística como degeneração da razão em vaidade formalista

A sofística representa não apenas uma corrente filosófica, mas um sintoma de uma época em crise. Sua ascensão não pode ser compreendida senão como expressão da dissolução dos fundamentos comunitários da pólis, da mercantilização do saber e da transformação do logos em moeda de prestígio. A sofística é a forma degenerada da dialética: a arte de manipular as contradições do pensamento para vencer, não para conhecer. O discurso se torna um fim em si mesmo, desconectado do real.

Os sofistas afirmam que não existe verdade comum, apenas opiniões particulares. A cada homem, seu critério. Isso é o germe do relativismo e, no limite, do niilismo. A verdade, reduzida ao efeito retórico, perde sua força transformadora. A crítica, transformada em técnica de argumentação, deixa de ser instrumento de superação do erro e se torna performance de vaidade. O pensamento se autonomiza da realidade — e é nesse abismo que se inscreve a crítica sofística contemporânea: o Assistente sem teoria, o Secretário sem prática, o militante moralista hipócrita.

Se queremos construir uma prática revolucionária viva, devemos recuperar o espírito socrático do diálogo como busca comum, o rigor aristotélico da prática informada e o método marxista da crítica como expressão de contradições reais. A luta contra a sofística é, antes de tudo, uma luta pela verdade como produto histórico do engajamento coletivo com a realidade. Não há outro caminho senão o de unir pensamento e vida, teoria e prática, forma e conteúdo — sob pena de transformar a revolução em retórica e a autocrítica em teatro.

E é por isso que afirmamos, com a tradição dos grandes mestres do materialismo dialético: não basta dizer a verdade; é preciso que ela seja verdade para a prática. E para isso, o erro não pode ser ocultado nem ridicularizado, mas enfrentado como etapa inevitável da consciência que se eleva pela luta.

3. O Taoísmo: o erro como expressão da transitoriedade das formas

A concepção de erro no pensamento taoísta — aquele que emerge na China do período dos Reinos Combatentes (século 6 a.C. a 3 a.C.), através da obra fundamental atribuída a Laozi, o Tao Te Ching — não parte de uma moralidade abstrata, tampouco de um código normativo exterior à própria realidade, mas de uma ontologia profundamente enraizada na mutabilidade das coisas. O erro, nesse quadro, não é um desvio ético, nem um juízo de condenação da vontade individual, mas a própria expressão de uma forma que se prende ao que já não é, ou que se adianta ao que ainda não veio a ser.

O Taoísmo nasce em contraposição não apenas às ortodoxias ritualísticas do confucionismo em formação, mas como um esforço de sistematização da experiência do mundo a partir da observação concreta dos ciclos da natureza — do fluxo dos rios, da germinação das plantas, da alternância das estações, da morte e nascimento de tudo que vive. Ao contrário das tradições religiosas moralistas ou das filosofias idealistas, o Taoísmo não julga a realidade a partir de princípios fixos, mas procura se harmonizar com ela aceitando sua impermanência como lei fundamental. Assim, a ideia de erro não é um absoluto, mas um relativo: um momento em que se perde a sintonia com o movimento do mundo, com o “Tao” — a totalidade contraditória e não antropomorfizada da realidade.

Nesse sentido, errar é endurecer. É permanecer rígido onde se deveria ser flexível, é resistir à mudança onde se deveria ceder, é tentar cristalizar o fluxo. É o ramo seco que se quebra na tempestade, enquanto o bambu — símbolo taoísta da sabedoria — se curva e volta. O erro, portanto, é o apego: a forma que se absolutiza, o conteúdo que se recusa a se transformar, o sujeito que tenta subjugar o tempo à sua vaidade. No Taoísmo, o erro não é punido — ele é superado, como tudo o que resiste ao Tao acaba sendo.

O Tao como totalidade impessoal e contraditória

Ao se perguntar o que é o Tao, não se deve esperar uma definição conceitual em termos ocidentais, muito menos uma entidade substancial ou um princípio causal nos moldes da arché pré-socrática. O Tao não é “algo”, mas o nome que se dá ao processo de tudo. Como se lê logo nos primeiros versos do Tao Te Ching: “O Tao que pode ser dito não é o Tao eterno”. A linguagem, presa às formas e oposições, jamais captura sua essência, que não é essência, mas movimento.

O Tao é o Todo como processo. Ele não é nem “bom” nem “mau”, nem “justo” nem “injusto”, porque todas essas categorias são diferenciações que só existem dentro de seus próprios contextos relacionais. Ele inclui e supera cada dualidade — é tanto nascimento quanto morte, tanto criação quanto destruição, tanto vazio quanto plenitude. Sua lógica é o entrelaçamento dos contrários, e não sua separação metafísica.

Diferente das concepções monoteístas e idealistas que personalizam o sentido do mundo, o Tao é impessoal, mas não indiferente. Ele age, mas não com intenção. Ele regula, mas não governa. Ele produz a ordem sem legislar. O Tao é a própria legalidade imanente da realidade em sua transformação constante. E por isso mesmo, a categoria de erro só pode ser pensada como deslocamento — um não-estar no tempo certo, uma dissonância entre ação e ritmo cósmico.

Do ponto de vista da dialética materialista, poderíamos dizer que o Taoísmo antecipa uma compreensão objetiva da totalidade em movimento, mas ainda não a reconhece como socialmente mediada. Sua totalidade é ainda natural, mas já é contraditória. É o movimento das contradições sem sujeito, o vir-a-ser do mundo como um devir cego, mas necessário. Essa é a sua grandeza — e também seu limite histórico.

Yin e Yang: acerto e erro, luz e sombra, como complementares

A estrutura interna da lógica taoísta se expressa mais claramente na simbologia do Taijitu, o conhecido círculo de duplo movimento que representa o Yin e o Yang — não como entidades separadas, mas como aspectos interdependentes de toda manifestação. Essa representação não é meramente cosmológica ou estética: ela indica que não há acerto sem erro, nem luz sem sombra, nem movimento sem repouso. O Yang (luz, atividade, expansão, calor) contém em seu núcleo o ponto do Yin (sombra, receptividade, contração, frio), e vice-versa. Nada é puramente um ou outro — tudo é sempre tensão, virada, inversão.

Essa concepção possui um alcance revolucionário na história do pensamento humano, pois recusa a cisão dualista que será retomada e absolutizada mais tarde pelas tradições zoroastrianas e judaico-cristãs. Aqui, os opostos não se combatem até o aniquilamento, mas coexistem, se implicam, se transformam mutuamente. O erro, nesse contexto, não é a negação do certo, mas sua condição. É porque há erro que há retificação, porque há sombra que se reconhece a luz.

Mais ainda: o erro, no símbolo do Yin e Yang, é aquele momento de máxima realização de um polo em que já se esconde a semente da virada — o momento em que o verão começa a se converter em outono, em que a força se torna rigidez, e a rigidez, fraqueza. O Tao é essa alternância perpétua. Toda tentativa de congelar o processo — seja em nome da pureza, da certeza ou da moral — é uma traição à própria vida.

A realidade como movimento dos contrários necessários

Nessa tradição, portanto, o erro não é objeto de juízo, mas de escuta. O sábio não condena, mas observa; não castiga, mas aprende. Como bem expressa o Zhuangzi, obra fundamental da escola taoísta: “O céu não fala, mas tudo se realiza”. A sabedoria consiste não em dominar a realidade, mas em acompanhá-la com leveza e firmeza, como quem navega num rio: aproveitando a corrente, evitando os rochedos, aceitando a chuva.

Contra a moral ocidental, que constrói o erro como pecado, e contra a racionalidade burguesa, que o vê como falha de cálculo, o Taoísmo ensina que o erro é uma curva no caminho — não um abismo. É a pausa que ensina a próxima passada. É, portanto, não apenas inevitável, mas necessário. O real não é um tribunal — é um processo. E onde há processo, há desvio, há tentativa, há aprendizagem. Não há erro último, apenas etapas transitórias do vir-a-ser.

Por isso, ao invés de construir uma ética baseada na obediência a mandamentos imutáveis, o Taoísmo propõe uma ética da sensibilidade e da presença. Uma ética do situacional, do concreto, do adequado. Não se trata de agir conforme um dever abstrato, mas de agir em harmonia com o tempo certo, com o lugar certo, com o gesto certo. E, por vezes, isso exigirá errar — pois o erro é parte da medida do mundo.

Na perspectiva do materialismo dialético, podemos dizer que o Taoísmo, em sua profundidade milenar, oferece ao pensamento revolucionário uma lição de humildade e de plasticidade: o real se transforma incessantemente, e o pensamento deve se transformar com ele. A crítica não é castigo, é afinação, da mesma forma que a autocrítica não é culpa, é escuta. A revolução, nesse sentido, é a arte de manter-se em movimento — com o povo, com a história, com o tempo. E não há movimento sem tropeço. Mas também não há caminho sem retomada.

4. A herança dialética do Oriente: para além do bem e do mal

A longa marcha do pensamento humano não se deu apenas em linha reta — tampouco em degraus ascendentes cumulativos. Avançou entre rupturas, regressões e resgates, cruzando tradições que, muitas vezes, não se falavam diretamente, mas que, ao serem postas em tensão, permitem desvelar os fundamentos esquecidos da consciência. Assim se dá com a herança dialética do Oriente: não uma mera alternativa ao racionalismo europeu, mas uma antecipação, em chave simbólica e existencial, daquilo que Hegel, Marx e Lênin, séculos depois, formalizariam como contradição constitutiva do real.

Ao contrário do pensamento escatológico que opõe os contrários como inimigos eternos, o Taoísmo, o Budismo Mahayana e certas concepções da filosofia hindu (como o conceito de prakriti em Sankhya), compreendem o mundo como unidade de tensões: o sim e o não, o frio e o calor, o ruído e o silêncio, o erro e o acerto — não como opostos que devem se aniquilar, mas como movimentos que se implicam. Essa tradição filosófica não confunde contradição com conflito destrutivo, mas reconhece que só há vida onde há alternância, tensão e reversibilidade. O erro, portanto, não é o inimigo da verdade: é sua condição de possibilidade.

Enquanto o Ocidente teológico-moral se afunda na perseguição do “mal” como impureza, o Oriente ensina: o escuro revela a luz. O inverno prepara a primavera. A ausência anuncia a forma. É uma sabedoria profundamente histórica — embora ainda não histórica no sentido marxista. Porque intui que nada é fixo, tudo se move. Mas ainda o faz sem revelar as estruturas materiais que condicionam essas mutações. Ainda assim, essa filosofia antecipa, por outras vias, a compreensão do erro como momento necessário da existência e da superação.

O Oriente e a sabedoria do erro

Na filosofia clássica chinesa, encontramos um salto qualitativo na compreensão do erro. Não mais como destino nem como desvio, mas como expressão do próprio movimento real da existência. No Tao, o erro não é o oposto da verdade, mas sua condição. Pois toda forma é transitória, e tudo que nasce carrega em si a tendência ao seu oposto.

O Yin e o Yang não representam o bem e o mal, mas a alternância incessante e complementar entre calor e frio, ascensão e queda, vigor e esgotamento. Erro e acerto são momentos do fluxo. A realidade é movimento, não julgamento. Em contraste com a metafísica grega ou a moral do pecado cristão, o Tao ensina a olhar o erro com serenidade, como parte da dança da existência.

É a perda dessa concepção orgânica que abre caminho para o dualismo do zoroastrismo persa. Ao converter os contrários necessários em opostos morais, inaugura-se a cisão metafísica entre bem e mal. A realidade passa a ser palco de um conflito ético, e o erro, convertido em “pecado”, é algo a ser extirpado, não compreendido. Aqui jaz a origem de uma das formas mais perniciosas da ideologia reacionária: a concepção de um mundo purificado de contradições, a esperança em uma escatologia sem antagonismos.

Mas a sabedoria do Tao persiste como herança subterrânea. Sua visão da realidade como “circunstância provisória de contrários necessários” é, sem o saber, profundamente dialética. Ela nos ensina que pensar é acompanhar o curso das transformações, e que o erro não é queda, mas condição de reequilíbrio. O verdadeiro, aqui, é aquilo que se transforma. Eis um solo fecundo para a crítica revolucionária.

A primeira forma de superação do erro, portanto, não é sua negação abstrata, mas sua incorporação consciente como parte do real. Ao reconhecê-lo como momento da formação da consciência, os mestres do Oriente antecipam, em chave sapiencial, aquilo que a ciência histórica proletária realizará em bases materiais: a crítica como reconciliação consciente com a contradição.

5. O Zoroastrismo e a degeneração da contradição em dualismo moral

O Oriente, berço de uma das mais poderosas tradições dialéticas da humanidade — que soube ver nos contrários não uma ameaça à ordem, mas sua própria substância —, foi também, por paradoxo histórico, o solo onde germinou uma das mais duradouras traições ao espírito da contradição: o dualismo absoluto entre o bem e o mal. Com o surgimento do Zoroastrismo na antiga Pérsia, entre os séculos 5 e 6 a.C., assistimos a uma mutação filosófica decisiva: a contradição como motor do real é substituída pelo antagonismo como combate escatológico. O Tao, enquanto dança perpétua entre Yin e Yang, é substituído por Ahura Mazda contra Angra Mainyu — a Luz contra as Trevas, a Verdade contra a Mentira, o Bem contra o Mal. Não mais complementaridade, mas oposição. Não mais movimento, mas guerra apocalíptica.

Na cosmovisão zoroastriana, influenciada por profundas reestruturações sociais e religiosas de um império em consolidação, o erro deixa de ser visto como parte de uma totalidade contraditória e passa a ser interpretado como corrupção do princípio bom por uma força externa maligna. A ambivalência ontológica do mundo é dissolvida numa ontologia cindida em dois reinos irreconciliáveis. O que antes era necessário torna-se profano. O que era educativo torna-se sujo. O erro, enquanto momento dialético de transformação, agora é falha espiritual — um desvio não do caminho, mas da pureza. Está assim aberto o caminho para a moral teológica da culpa.

A ruptura da amoralidade da natureza

A natureza, até então vista como amoral — ou seja, como campo de forças indiferente às categorias humanas de bem e mal —, é agora julgada à luz de um código sagrado. O que era necessário torna-se proibido. A serpente que dá o fruto do conhecimento é transformada em símbolo do mal. O desejo, a dúvida, a contradição, a experimentação — todas essas expressões legítimas da vida tornam-se sintomas de queda.

A história se espiritualiza, a matéria se corrompe, e o corpo — sede de desejos e erros — se torna cárcere da alma. É o triunfo da metafísica contra a dialética. E o resultado é catastrófico: os seres humanos deixam de ver o erro como expressão da realidade contraditória, e passam a vê-lo como falência pessoal. A crítica, ao invés de ferramenta de elevação, torna-se dedo em riste. A autocrítica, ao invés de consciência, vira autoflagelo.

Aqui se instala o que se chamará, séculos depois, de subjetivismo idealista: a ideia de que a verdade não está mais no mundo, mas na alma; que o erro não está mais no desencontro entre teoria e prática, mas na sujeira moral íntima do sujeito. Essa herança teológica é um dos mais profundos entraves à formação da consciência revolucionária. Porque onde há culpa, não há crítica. Onde há pecado, não há síntese. Onde há escatologia, não há necessidade de revolução.

É contra esse moralismo degenerado que o marxismo se ergue como método de libertação. Não prometendo um mundo sem erros, mas um mundo onde os erros sejam compreendidos, analisados, superados coletivamente. Onde a crítica não destrua, mas construa. Onde a história não seja espera da perfeição, mas processo de transformação contínua. O comunismo, aqui, é o retorno à terra firme da realidade — essa que erra, que cai, que se levanta — para edificar, com os pés na lama e os olhos no horizonte, a sociedade do humano por inteiro.

A cisão bem e mal como enfrentamento e fim dos opostos

A contradição, que no pensamento dialético é interna, imanente, geradora — torna-se, no dualismo moral zoroastriano, uma batalha externa entre substâncias fixas e impermeáveis. Os contrários deixam de ser momentos necessários um ao outro e passam a ser forças estrangeiras, mutuamente excludentes, que só podem coexistir no choque, jamais na transformação mútua. Essa operação metafísica inaugura um salto qualitativo no campo da moral: o erro deixa de ser o outro lado do acerto — momento inferior a ser superado — e passa a ser substância corrupta, presença ilegítima e inassimilável, cuja única solução é a erradicação total.

Dessa mutação nasce o princípio da purificação. Onde antes havia a possibilidade de reconciliação pela superação consciente, instala-se a lógica da expulsão. Onde antes o erro era instrumento de aprendizado, passa a ser contaminação a ser lavada, isolada, queimada. A lógica da purificação impregna não apenas o campo religioso, mas todo o tecido social: o erro torna-se mancha, e a mancha exige ritual. Surgem, assim, as prescrições de alimentação, os jejuns e interdições alimentares para “manter puro” o corpo; os ritos de banho e ablução para “lavar” a alma; os sacrifícios para “aplacar” forças invisíveis; e, sobretudo, as cerimônias de expiação, cujo objetivo não é compreender as causas do desvio, mas interromper o contágio moral que dele supostamente decorre.

A expiação, nesses sistemas, não é um momento excepcional, mas um modo de vida. Comer, dormir, trabalhar, amar, menstruar — tudo é regulado por códigos de pureza e contaminação. A conduta não é guiada pela compreensão da necessidade histórica, mas pela vigilância sobre si e sobre o outro, numa economia moral em que cada gesto pode ser classificado como aproximação ao “bem” ou deslizamento para o “mal”. O erro, assim, deixa de ser categoria objetiva do processo social e converte-se em marca subjetiva de culpa, inseparável do indivíduo até que este se submeta ao rito de purificação.

Essa estrutura — já plenamente formada no zoroastrismo e herdada, sob outras formas, pelas tradições judaicas e cristãs primitivas — instala no psiquismo humano a ideia de que há algo de essencialmente “imundo” que pode residir em nós e que precisa ser expulso. O dualismo deixa de ser apenas doutrina: ele molda os hábitos, infiltra-se na consciência, produz uma subjetividade que vê na ambiguidade e na contradição não uma fonte de movimento, mas uma ameaça existencial.

O resultado é a internalização de um medo permanente de si mesmo, de um escrutínio incessante sobre a própria conduta e a conduta alheia. A realidade histórica, concreta, contraditória — que pulsa entre tentativas, erros, rupturas e superações — é desfigurada e substituída pela fantasia de um mundo sem tropeços, sem incertezas, sem história. E sem história não há política: resta apenas a cruzada moral, o tribunal, a purificação infinita, o suicídio do desejo natural humano.

6. Da Pérsia à escatologia judaico-cristã: da dialética à moral absoluta

É este o germe venenoso que, através de múltiplas mediações culturais, se enraíza no judaísmo pós-exílico, quando a elite sacerdotal, retornando do cativeiro babilônico sob a hegemonia persa, absorve e reelabora categorias inteiras do dualismo zoroastrista. Não se trata de mera influência lateral: a teologia persa, com sua rígida cisão entre Bem e Mal como substâncias absolutas, com seus ritos de purificação, com sua expectativa de um juízo final e de um reino eterno, oferece ao judaísmo uma arquitetura metafísica capaz de unificar e endurecer sua lei, ampliando seu poder de controle social.

A partir desse momento, sob a autoridade dos escribas e sacerdotes do Segundo Templo, o erro deixa de ser visto apenas como desobediência coletiva à aliança com Yahweh e passa a ser mancha individual, interiorizada, que requer expiação pessoal. Os códigos mosaicos, reelaborados e compilados na Torá, tornam-se não apenas legislação para a vida civil e religiosa, mas manual minucioso de pureza, regulando desde a alimentação até a sexualidade, desde a maneira de semear até a forma de tocar um cadáver. Toda a existência humana é recoberta por prescrições e interdições que têm como centro a separação entre o puro e o impuro, elevando a purificação a princípio organizador da vida social.

Nesse sistema, a mulher — já carregando, pela tradição adâmica, a culpa primeira da queda — é reforçada como fonte de contaminação ritual, seja pelo sangue menstrual, pela gestação ou pelo parto. A biologia feminina é, assim, inscrita na lógica da impureza, tornando-se não apenas marcador social de subordinação, mas justificativa teológica para exclusões e segregações. A vida cotidiana é atravessada pela convicção de que a terra, o corpo e o desejo são fontes permanentes de imundície, e que só a obediência ritual à lei sacerdotal pode restituir a condição de pureza.

Ao mesmo tempo, a noção de pecado migra de um fenômeno eminentemente coletivo — a infidelidade de todo o povo à aliança — para um fenômeno individual, que reforça a dependência de cada crente em relação ao aparato sacerdotal e ao Templo como centro exclusivo da mediação com Deus. O sistema de sacrifícios, ofertas e expiações se expande, tornando-se não apenas uma necessidade espiritual, mas também um mecanismo econômico e político que sustenta a casta sacerdotal e centraliza o poder no culto de Jerusalém.

Dessa fusão entre o dualismo zoroastrista e o legalismo mosaico, nasce uma nova consciência religiosa: uma consciência moldada pela dicotomia absoluta entre pureza e impureza, salvação e condenação, eleitos e réprobos. É esta estrutura que prepara o terreno para a escatologia cristã primitiva, na qual o diabo — herdeiro direto de Angra Mainyu — se torna figura central, e o pecado original transforma cada nascimento em herança de culpa. Já não se trata de erros humanos, compreensíveis nas trilhas do real, mas da tentação demoníaca e da queda espiritual inata, cuja única solução é a submissão absoluta a um Bem transcendente, a uma Verdade revelada, a uma Lei fora da história.

Assim se constrói a mitologia da salvação, com sua promessa de um juízo final onde o mal será definitivamente vencido e o erro abolido para sempre. O paraíso escatológico é a sociedade sem contradições — isto é, sem transformações, sem conflitos, sem pensamento vivo. Uma paz que é, na verdade, morte. Uma pureza que é esterilidade. Um bem que, por ter vencido o mal sem o incorporar, tornou-se tirania metafísica.

Mas o mais danoso efeito dessa moral absoluta é a mutilação da consciência popular. Porque se o erro é pecado, a autocrítica vira vergonha. Se errar é manchar a alma, corrigir-se já não basta — é preciso ajoelhar-se, chorar, implorar, mutilar-se, negar a si mesmo como certo. A pedagogia da culpa substitui a pedagogia da superação. A luta por transformar-se é abafada pela necessidade de expiar. A política da transformação vira moralismo punitivo. E os povos, esmagados entre infernos e paraísos prometidos, desaprendem a lutar.

O pecado como essência do humano no cristianismo

Se na tragédia grega o erro — a hamartia — era o desenlace trágico da tensão entre liberdade e destino, e no pensamento oriental o erro se inscrevia na lógica harmônica da complementaridade dos opostos, no cristianismo ele sofre uma mutação profunda: deixa de ser entendido como expressão natural, objetiva, da condição humana frente à totalidade e se converte, fundamentalmente, em ofensa subjetiva, moral, contra uma ordem transcendental. O erro deixa de ser necessário para o movimento do real e passa a ser transgressão culpável: pecado. Eis aqui a virada reacionária de uma civilização que, ao fundar-se sobre o patriarcalismo monoteísta de matriz semita, converte o conflito da história em drama moral da alma.

Essa transposição não é apenas doutrinária; é uma transfiguração ontológica da própria experiência do erro. A prática é dessubstancializada, a história é substituída por uma dramaturgia espiritual, e o erro é arrancado de sua condição dialética como momento de mediação do real. No lugar do desenvolvimento das contradições, instala-se o tribunal do juízo. O erro não é um passo em direção à verdade; é queda, culpa, ofensa, ruptura com a ordem divina. Da queda original ao juízo final, toda a história se reconstrói como redenção escatológica da mancha do erro.

A categoria de pecado implica uma interiorização radical da norma. Não basta mais obedecer; é preciso desejar obedecer, controlar rigorosamente pensamentos, impulsos, desejos. Não basta mais agir corretamente; é preciso sentir-se puro, querer ser puro. O erro não é mais medido pelos resultados objetivos da prática, mas pela conformidade subjetiva da consciência com o dogma revelado. Trata-se aqui de uma operação ideológica profunda: romper o nexo entre prática e verdade para subordiná-la à confissão, ao arrependimento, à penitência.

Tal lógica atinge seu paroxismo na narrativa cristã do nascimento de Jesus, em que, no Evangelho de Lucas, capítulo 2, é relatada a ida de Maria e do recém-nascido ao Templo de Jerusalém, sete dias após o parto, para a purificação. Segundo a lei sacerdotal vigente, o parto é impureza — não por complicações, não por doença, mas pelo simples fato de ter ocorrido no útero feminino. Para “limpar” essa mancha, o sacerdote mata duas rolinhas: o sangue inocente das aves substitui simbolicamente a eliminação da imundície do bebê Jesus e da mãe. É um episódio de uma violência teológica silenciosa e repulsiva: aqui está um recém-nascido, que mal abriu os olhos para o mundo, e já carrega sobre si a marca de um crime hereditário, já vive sob a sombra de uma sentença de morte.

Mais perverso ainda é que, se o bebê for do sexo feminino, o tempo de reclusão e purificação da mãe é dobrado — a própria vida que ela gerou é considerada mais impura por ser mulher. Este é o ponto extremo da moral teocrática: tudo o que é natural, belo e vital — o parto, a menstruação, o sexo, o desejo — converte-se em sinal de contaminação. E, como a mancha é tida como inerente à carne, especialmente à carne feminina, a vida inteira é organizada em torno de rituais de expiação, um modo de existência regulado pela ideia de que viver já é ofender o divino.

Na religião cristã, o erro só se resolve pelo perdão, e o perdão é uma concessão temporária. Ele é a mediação do Senhor magnânimo, que se compadece do servo arrependido. A justiça não decorre do movimento das contradições objetivas, mas da graça unilateral de uma potência transcendente. O erro é sempre do indivíduo, não da sociedade. A correção é sempre espiritual, não histórica.

A ideologia do perdão, portanto, é profundamente reacionária: ela liquida a responsabilidade coletiva pela transformação das condições que produzem o erro, dissolvendo-o numa moral do arrependimento subjetivo. Não se trata mais de corrigir a prática social, de enfrentar as contradições da luta ou de aprender com os fracassos da experiência; trata-se de salvar a alma. Como bem identificou Marx ao criticar a ilusão religiosa, a religião é o suspiro da criatura oprimida, o ópio do povo — e é em torno da categoria de pecado que esse ópio produz uma falsa resolução para as dores reais.

O cristianismo inaugura, portanto, uma forma histórico-social de gestão do erro que abandona o terreno da objetividade prática para instaurar um regime de vigilância moral, uma polícia da consciência, uma repressão da dialética sob o pretexto da pureza. Ao separar radicalmente o certo do errado, o bem do mal, a alma do corpo, o mundo terreno do mundo espiritual, constrói-se a mais nefasta das doutrinas contrarrevolucionárias: aquela que transforma a luta pela verdade num ato de submissão — e esta teologia, esta concepção, desgraçou a história do mundo, principalmente do Ocidente, desgastou o ser humano à gênese de regras perversas.

Contra isso, a tradição marxista-leninista reabilita o erro como elemento constitutivo da prática. Em vez de arrependimento, crítica. Em vez de culpa, consciência. Em vez de perdão, superação dialética, seu suprassumo. A verdade não é um dom revelado, mas uma conquista coletiva em processo. E a autocrítica, longe de ser confissão pública de pecados, é intervenção consciente nas mediações objetivas do real, como etapa de sua transformação.

7. América: reciprocidade, desequilíbrio e totalidade comunitária

A história do pensamento humano não é uma linha reta traçada da Grécia à Londres vitoriana, nem uma sequência sucessiva de abstrações iluminadas que se despejam, de tempos em tempos, sobre povos “sem filosofia”. Essa narrativa eurocêntrica — forjada pela burguesia europeia em seu esforço de legitimar a colonização como missão civilizatória — operou uma amputação epistemológica: expulsou da história universal as formas originárias de racionalidade que não falavam em grego, latim ou francês, mas que, no entanto, enfrentaram as mesmas questões fundamentais da existência — o tempo, o erro, a verdade, a comunidade, a justiça — a partir de suas próprias condições materiais e civilizacionais.

É precisamente contra essa mutilação idealista da história que se impõe a tarefa de recuperar — não em chave exotérica ou mística, mas dialética e histórica — as formas filosóficas elaboradas pelas civilizações pré-colombianas e pelos povos originários do continente americano, cuja densidade conceitual foi deliberadamente invisibilizada pelo pensamento colonial e pela metafísica cristã ocidental. Pois se é verdade que a filosofia nasce da prática, e se toda prática está atravessada por contradições, então também é verdade que todo povo que viveu, produziu, cultivou, construiu e lutou, pensou — e pensou profundamente — a contradição entre o ser e o dever-ser, entre a forma e o conteúdo, entre o acerto e o erro. E é essa verdade histórica que agora buscamos restaurar.

Nas altitudes dos Andes centrais, na vasta extensão da Tawantinsuyu, entre os quechuas e os aimarás que organizaram o mais desenvolvido sistema estatal da América pré-colonial, o erro não era concebido como transgressão de uma lei externa, tampouco como expressão de uma corrupção interior do sujeito — como será no cristianismo posterior —, mas como quebra da reciprocidade entre os elementos da totalidade viva que sustenta o mundo: o ayni (troca justa e mútua), o suma qamaña (bem viver coletivo), o ayllu (comunidade agrária), o pachakuti (tempo de virada). Aqui, errar é romper o fluxo da reciprocidade, desequilibrar a dança dos contrários que estruturam a vida natural e social — pois tudo, absolutamente tudo, existe em relação com tudo o mais. A terra, assim, não é um objeto, é um sujeito. A montanha, da mesma forma, não é uma paisagem, é um corpo. O tempo não é sucessão linear, é a espiral de repetições e inflexões. Assim, o erro — que não é “pecado” — é um desequilíbrio no corpo da coletividade, uma ruptura da harmonia cósmica-social que precisa ser restaurada, não punida.

E é precisamente essa ontologia da relação, que não separa natureza e humanidade, indivíduo e comunidade, tempo e espaço, que funda uma concepção de verdade profundamente diferente da lógica dualista e moralizante da tradição zoroastrista-cristã. A verdade, aqui, não é um dogma revelado, nem uma essência imóvel, mas uma consonância entre práticas sociais e ritmos naturais, uma escuta ativa do que está em dissonância, um reajuste permanente da prática comunitária às exigências do equilíbrio. O Pachamama, o Inti, os ciclos lunares e agrícolas, os rituais coletivos, tudo compõe uma totalidade dinâmica na qual o erro surge, inevitavelmente, como advertência histórica — não como falha técnica, nem como mancha moral, mas como sinal da necessidade de retomar o caminho do comum, do justo, do mutualmente reprodutivo.

Na Mesoamérica, civilizações como a maia e a mexica (asteca), organizadas em torno de sistemas calendáricos precisos, cosmogonias complexas e práticas político-religiosas integradas à produção agrícola, formulavam o erro em chave ritualística e cosmológica — mas não por ignorância ou superstição, e sim porque compreendiam, com lucidez histórica, que a ordem social é precária, transitória e conquistada a cada ciclo. O erro, então, é o momento em que a ordem humana se desajusta da ordem cósmica — não por vontade divina, mas por insuficiência na ação coletiva de harmonização. Assim, o calendário sagrado Tzolk’in, os ciclos das eras do sol, as oferendas e ritos agrícolas, são ferramentas não de submissão, mas de reafirmação da vontade coletiva de coabitar com o tempo, e não contra ele. Aqui também, o erro não isola, mas tem o fundamento de reconectar; não individualiza, mas reorganiza; não pune, e sim nos reinsere.

É nesse ponto que a cosmovisão ameríndia se revela, em toda sua riqueza, como uma antecipação prática de uma dialética da totalidade viva — ainda não historicizada de forma materialista nas categorias mais avançadas do saber, mas já posta como prática concreta de relação entre contrários. O mundo indígena, em sua multiplicidade linguística e cosmológica — guarani, tupi, mapuche, chibcha, zapoteca, e tantos outros — partilha, com mediações distintas, a concepção de que o conhecimento é um processo de escuta e de incorporação, onde o erro é sempre sinal de desvio da palavra verdadeira (nhe’enga, entre os guaranis), ou da quebra da aliança entre o sujeito e sua comunidade. E mais: que o saber verdadeiro é aquele que reconcilia, que reintegra o sujeito ao seu lugar no coletivo — lugar esse que não é dado, mas que se conquista e reconquista em cada gesto, em cada estação, em cada relação com o outro, humano ou não-humano.

A colonização europeia, com sua cruz e sua espada, destruiu essas formas de relação com o mundo não apenas com pólvora, aço e catequese, mas também com uma nova lógica do erro — uma lógica culpabilizante, moralizante, punitiva e individualizante, que dissolveu os laços comunitários em nome da salvação da alma e da propriedade privada. O que antes era reajuste, tornou-se pecado; o que antes era desvio coletivo do curso natural, tornou-se culpa pessoal; o que antes era transformação necessária, tornou-se falha irreparável. A crítica desapareceu como prática comunitária e reapareceu como confissão individual. O erro deixou de ser sinal de necessidade e se tornou crime contra Deus. O dualismo venceu — por enquanto.

Mas a memória dessas outras racionalidades não desapareceu. Ela resiste nos coletivos e comunidades indígenas que seguem lutando. Nas práticas camponesas que conservam o ayni sem nomeá-lo. Na sabedoria oral que sobreviveu aos missionários e às escolas de conversão. E é essa memória que o materialismo dialético, em seu esforço universalista, deve incorporar — não como adereço cultural ou romantismo anti-europeu e decolonial, mas como expressão histórica concreta de que a dialética, antes de ser formulada, descoberta e universalizada por Hegel, já pulsava em suas formas rudimentares na experiência de povos que viveram em relação orgânica com a contradição.

Essa tradição ameríndia, ao conceber o erro como parte de um metabolismo social-natural em desequilíbrio, antecipa — ainda que de forma não historicizada — o princípio marxista de que a verdade é sempre concreta, e que toda forma histórica contém em si seu limite e sua superação. Assim, é possível afirmar que a crítica revolucionária que defendemos — como prática de correção coletiva, de aprendizado organizado, de superação consciente das formas caducas — não é estranha à história do continente: ela é, ao contrário, sua mais alta expressão atualizada. A autocrítica comunista, nesse sentido, é também uma retomada do gesto de restaurar o comum.

Integrar essa dimensão à nossa análise não é uma concessão multicultural, mas uma exigência materialista: a de compreender que a luta contra o imperialismo é também luta pela restituição do pensamento como prática comunitária viva, e que a crítica revolucionária só será universal quando for também ameríndia, andina, afro-diaspórica e popular — isto é, quando for síntese viva da luta concreta dos povos contra a alienação, o capital e sua forma superior: o colonialismo.

8. Iluminismo e modernidade burguesa

Se o cristianismo lançou o erro ao domínio da alma, convertendo-o em culpa e pecado, a modernidade burguesa, surgida com a ascensão do capital industrial e a derrocada do feudalismo, realizará um deslocamento estrutural dessa concepção, secularizando a culpa sem superar sua lógica essencial. O erro, agora, não será mais a transgressão contra uma verdade revelada por Deus, mas a insuficiência diante de uma razão abstrata, entendida como medida universal e eterna do progresso humano. Em nome da razão, o novo mundo burguês erige tribunais epistemológicos mais impiedosos que os concílios eclesiásticos, exigindo que o erro seja corrigido pela técnica, pelo cálculo, pela estatística, pela reeducação científica — e não mais pelo confessionário. Mas em ambos os casos, permanece o espírito inquisitorial: o erro é externo ao movimento, e, portanto, deve ser expurgado como um corpo estranho à marcha da história.

A racionalidade iluminista, encarnada em figuras como Voltaire, Diderot, Rousseau e Condorcet, que se opôs com coragem às trevas do obscurantismo clerical e absolutista, carregava, contudo, suas próprias limitações estruturais. Ao declarar o homem como um ser racional por essência e atribuir ao erro o papel de uma sombra da ignorância — um resíduo da superstição —, essa corrente pensava poder extirpar os erros com o simples avanço da instrução pública. Nessa concepção, o erro era reduzido à ignorância de fatos, dados, princípios racionais universais: uma falha na engrenagem da mente, não uma contradição objetiva entre formas sociais historicamente determinadas.

O progresso, então, passou a ser medido por índices de racionalidade técnica: produtividade, exatidão, domínio da natureza. Nascia, assim, a ideia de erro como “falha de sistema”, como disfunção passível de correção por mais cálculos, mais informação, mais eficiência. A crítica burguesa transforma-se em uma crítica tecnocrata e positivista, e não dialética: ela busca remover o erro, não o compreender como expressão de uma contradição real. A pedagogia liberal, por exemplo, ensina que “errar é humano”, mas apenas como uma concessão sentimental — pois, na prática, o erro continua a ser punido como um desvio pessoal e corrigido com métodos adestradores, as vezes condicionadas por métodos psicológicos como os reflexos condicionados.

Em sua forma mais desenvolvida, a crítica da razão burguesa encontra seu ápice na filosofia kantiana e na dialética negativa de Hegel, que, apesar de ultrapassarem a simples razão iluminista e afirmarem a mediação histórica e contraditória do conhecimento, ainda expressam os limites da própria consciência burguesa. Kant encara o erro como um limite epistemológico da razão pura, que deve ser superado por um uso regulativo da razão prática. Já Hegel, em sua obra monumental, transforma o erro em momento necessário da verdade, mas ainda sob o manto da autoconsciência idealista do Espírito — incapaz de ancorar o erro nas contradições materiais da produção e da luta de classes.

Dessa forma, a crítica burguesa, embora avance sobre o dogmatismo religioso, não rompe com a estrutura moralizante do erro: substitui o “pecador” pelo “irracional”, o “desviado” pelo “desinformado”, o “herege” pelo “anacrônico”. Marx e Engels denunciarão, com impiedosa clareza, essa limitação de classe: a crítica da modernidade burguesa permanece funcional ao seu modo de produção, à sua dominação de classe, à sua necessidade de manter as aparências de neutralidade racional enquanto perpetua a irracionalidade da exploração capitalista.

O erro, para a modernidade burguesa, é sempre um problema de forma — nunca de conteúdo. Erra-se porque se pensa mal, se fala mal, se age mal em relação a normas estabelecidas, não porque o mundo esteja atravessado por contradições que fazem o erro brotar do próprio coração da prática social. Não há espaço, nessa lógica, para o erro revolucionário, o erro de quem luta para transformar a ordem existente. O único erro permitido é aquele que se corrige dentro do sistema, e não aquele que põe o sistema em questão. Por isso, a crítica burguesa é sempre limitada, e sua autocrítica, quando existe, é superficial — pois teme reconhecer que seus “erros” são, na verdade, expressões de suas contradições estruturais.

Será o materialismo histórico que, pela primeira vez na história, conferirá ao erro um estatuto verdadeiramente científico, libertando-o tanto da culpa religiosa quanto da abstração tecnocrática-positivista. Será com Marx, Engels e o socialismo científico que a crítica deixará de ser apenas uma forma de ajuste funcional, para se tornar um instrumento de negação revolucionária e superação dialética da realidade. E será com o Partido Comunista que a autocrítica se tornará, finalmente, uma arma política de transformação coletiva, e não um ritual individual de penitência ou correção burocrática. Mas para chegar até aí, foi preciso atravessar esse longo e sinuoso caminho, onde o erro foi, sucessivamente, pecado, ignorância, disfunção — e nunca, ainda, contradição histórica viva.

A Moral, o Erro e a Dialética

A história do pensamento humano legou à prática política moderna duas heranças profundamente distintas no trato com o erro: a herança dialética, para a qual todo fenômeno contém em si forças e contradições que, sob determinadas condições, se transformam umas nas outras e dão origem ao novo; e a herança moralista, especialmente a tradição cristã e dualista, que enxerga o erro como um “pecado” absoluto, imputado a um indivíduo ou coletivo como mancha permanente, objeto de condenação e expiação.

A moral cristã — herdeira de formas antigas de dualismo zoroastrista — cristaliza o mundo em pares antagônicos fixos e externos: bem e mal, verdade e mentira, luz e trevas. Não há transformação interna de um polo no outro, mas apenas a guerra eterna entre dois absolutos, conduzida por critérios transcendentais, escatológicos e apocalípticos. Transportada para a política, essa visão bloqueia a análise materialista: o erro deixa de ser momento necessário do movimento real e passa a ser visto como falha moral, sinal de “corrupção” intrínseca de um indivíduo ou grupo. A crítica se torna julgamento, e o julgamento, condenação.

Outra tradição, distinta, melhor, mais humana, mas igualmente limitada, é a concepção taoísta e confucionista-circular da contradição, que entende a relação entre opostos como simples alternância externa de posições: o alto vira baixo, o baixo vira alto; a paz vira guerra, a guerra vira paz; o acerto vira erro, o erro vira acerto etc. Embora capte a ideia de interdependência, essa visão ignora a categoria dialética da negação da negação e o desenvolvimento progressivo espiralado: não há suprassumo qualitativamente novo, o salto do velho ao novo, apenas repetição de estados que se sucedem no mesmo plano.

O método dialético marxista supera ambas as limitações. Nele, a contradição não é apenas oposição formal, mas unidade viva e temporária de contrários cuja interação interna — não mera troca de lugares — engendra transformação qualitativa através do seu conflito, através da luta permanente entre ambos. O erro, nesse sentido, não é acidente a ser expurgado, mas momento inevitável e, se assumido conscientemente, fonte de avanço. A vida da organização não é ciclo plano de acertos e desacertos, mas processo espiralado, em que cada superação incorpora e eleva elementos do estágio anterior. Ao contrário do moralismo, que paralisa, e do circularismo, que estagna, a dialética impulsiona a autotransformação permanente.

É nessa base que se deve compreender a crítica e a autocrítica no Partido: não como tribunal de virtudes nem como ritual mecânico, mas como instrumento consciente de transformação, capaz de converter cada momento negativo em força para o salto adiante. Somente assim se mantém a vitalidade revolucionária e se impede que a organização, ao errar, caia no abismo da culpa estéril ou no pântano da repetição infinita.

Da crítica contemplativa à crítica revolucionária

Assim, ao percorrermos as múltiplas formas históricas da concepção do erro — da ruptura cósmica no Egito à transgressão ética na Grécia; da dissonância taoísta ao pecado cristão; do dualismo zoroastrista ao funcionalismo iluminista; da circularidade ameríndia à moralidade moderna —, não traçamos uma linha evolutiva linear, nem um mapa de superações cumulativas, mas um mosaico dialético de tentativas históricas parciais de capturar, conceitualmente, aquilo que a prática vivida já intuía: que toda verdade é uma forma em disputa, e que todo erro é um momento necessário da verdade em processo.

O que cada uma dessas tradições revelou, com seus próprios meios e limites, foi que o erro é inseparável do movimento — que não há forma estável sem ruptura, que não há conhecimento sem falha, que não há acerto sem a possibilidade concreta do desacerto. Mas, ao mesmo tempo, cada uma dessas formas filosóficas, religiosas ou cosmológicas também estagnou no ponto em que deveria saltar: quando a contradição foi tratada como essência abstrata, como destino metafísico, como alternância cíclica ou como juízo moral — e não como relação social historicamente mediada, como forma concreta da prática que transforma o mundo e se transforma a si mesma.

Foi esse salto — do erro como aparência à verdade como prática — que nenhuma tradição anterior ao marxismo foi capaz de realizar plenamente. Porque em todas elas, mesmo nas mais profundas, a contradição era contemplada, sentida, intuída, dramatizada, até mesmo respeitada — mas jamais organizada como forma objetiva de superação. Faltava a mediação. Faltava a categoria da totalidade histórico-social. Faltava a luta de classes.

É somente com o surgimento da crítica comunista — não como moral, mas como ciência da transformação revolucionária — que o erro deixa de ser ruído na ordem e passa a ser sintoma da contradição objetiva que exige reorganização total da vida social. Só com Marx, com Engels, com Lênin, com Stálin e com Enver Hoxha, é que a crítica se liberta do tribunal moral, rompe com a passividade idealista, e se converte em arma organizativa da luta proletária, em método de autotransformação coletiva, em força material que opera dentro do Partido e na sociedade como expressão da luta de classes em seu interior.

E aqui reside o fundamento novo: a crítica e a autocrítica, enquanto formas superiores de consciência prática, só podem existir como momentos de uma organização revolucionária viva, que reconhece no erro não um desvio acidental, mas o reflexo objetivo das contradições entre o ideal e o real, entre o programa e a prática, entre a linha e sua aplicação. A autocrítica, enquanto método bolchevique, não é uma negação do sujeito: é sua mediação com o real. Dessa forma, buscamos construir essas sínteses no lugar da penitência, buscamos transformar e elevar no lugar de humilhar.

Por isso, a crítica que se propõe revolucionária deve também ser crítica das formas idealistas de crítica. Crítica da crítica vazia. Crítica da crítica cínica. Crítica da crítica que apenas denuncia, mas não reconstrói. Porque toda crítica que não se organiza como prática — como instrumento de transformação das condições concretas — será, inevitavelmente, capturada pelas formas dominantes da ideologia burguesa: o moralismo, o academicismo, o espetáculo, o niilismo, o ressentimento.

E é por isso que agora, com as mediações históricas expostas, os limites das concepções anteriores superados, e a necessidade prática colocada, passamos da teoria à organização; da genealogia do erro à sua superação real; da contemplação da contradição à sua transformação objetiva. Chegamos, assim, ao ponto decisivo de nossa exposição: afirmar, de modo rigoroso e concreto, a crítica e a autocrítica como método revolucionário do Partido Comunista, como forma superior da consciência dialética militante, como instrumento pedagógico de elevação do nível ideológico, político e organizativo da vanguarda proletária. É chegada a hora de descer dos céus das ideias à terra firme da luta real, contraditória, confusa, nebulosa e, ao mesmo tempo, concreta e real.

III. A FORMAÇÃO MARXISTA ATRAVÉS DA CRÍTICA

O materialismo dialético e o erro como expressão de contradições reais

Se a tradição cristã condenava o erro como pecado a ser expiado pela penitência — enraizando-o na subjetividade culpada do indivíduo — e o taoísmo o aceitava como expressão da alternância cíclica e imutável entre os contrários, o materialismo dialético produziu uma ruptura teórica e prática ao situar o erro não como uma anomalia, mas como forma transitória e necessária de manifestação das contradições reais do mundo objetivo. Nem falta moral, nem alterações externas de opostos: o erro, para o marxismo, é expressão da historicidade concreta das formas de conhecimento, das formas de prática e das formas de organização social que mediam o movimento.

Marx e Engels, ao depurarem a herança hegeliana da névoa idealista, mostraram que a verdade não é um absoluto imutável revelado por alguma razão especulativa, mas um processo histórico em constante movimento, atravessado por contradições internas, cuja trajetória é mediada por sucessivos erros. Cada erro não é simplesmente uma negação da verdade, mas sim o momento dialético de sua gestação, a expressão de um limite histórico de compreensão que, ao ser enfrentado pela crítica, impulsiona o avanço qualitativo da consciência. O erro não é a ausência da verdade, mas sua forma inadequada e contraditória, que demanda superação ativa. Ele contém em si, como toda forma negativa, os germes da positividade futura.

Diferentemente do conhecimento burguês e do tecnocratismo positivista, que encaram o erro como falha técnica do indivíduo ou como falha acidental na engrenagem da razão, o materialismo dialético mostra que os erros surgem da inserção do sujeito no processo social contraditório. Eles são expressão da limitação objetiva de determinada posição de classe, de determinada forma de prática e de determinadas condições materiais de existência. O erro, portanto, não é apenas cognitivo, mas político e histórico.

E é precisamente por isso que a crítica, no método marxista, não pode ser uma atividade de denúncia moral, nem uma lamentação subjetiva. Ela deve ser uma negação determinada, interna ao processo real, fundamentada na análise concreta das contradições e com o objetivo de superá-las através da prática transformadora. A crítica é a consciência do negativo, a organização racional do desmonte de formas superadas, a destruição que gera a nova construção. Ela exige o domínio rigoroso das mediações, pois sua função não é apenas negar, mas também apontar o novo contido na velha forma. É neste sentido que a crítica se transforma em força produtiva, em instrumento da revolução.

A autocrítica é a forma mais elevada desta crítica: a capacidade de uma organização revolucionária voltar-se contra si mesma não como autoflagelo, mas como método de aperfeiçoamento coletivo. O sujeito revolucionário não é infalível, mas deve ser capaz de assimilar suas falhas como mediações necessárias para sua superação. Stálin, com extrema clareza, apontava que não existe Partido invencível que se recuse a reconhecer seus erros, e que ocultar os erros por vaidade ou medo do julgamento dos inimigos é o caminho mais direto à ruína. Lênin insistia que só um Partido que aprende com seus próprios fracassos e os transforma em experiências pedagógicas para as massas é digno de confiança e pode efetivamente conduzir a revolução.

É aqui que se rompe com a circularidade mística do taoísmo, que vê os opostos como eternos, repetitivos e equivalentes. A unidade de contrários, para o marxismo, não é um equilíbrio estático, mas uma tensão instável que se converte em luta, que leva à transformação qualitativa. Os contrários se constituem mutuamente, mas também se destroem mutuamente. Onde o taoísmo vê o retorno, o marxismo vê o suprassumo. Onde o taoísmo vê alternância entre noite e dia, entre categorias opostas externas, o marxismo vê a produção de uma nova temporalidade social, forjada pela ação consciente, através de contradições internas, as vezes não-observáveis de forma sensível, mas através da ontologia, epistemologia, pesquisa, reconstrução teórica, exposição e prática.

A crítica não é, portanto, a repetição de oposições: é a prática teórica que desvela o velho como velho, que expõe a limitação do presente e afirma a possibilidade do futuro. Ela nasce da realidade e retorna a ela transformando-a. A autocrítica, nesse contexto, é mais do que uma postura individual: é um princípio organizativo, uma ética da coletividade revolucionária, que se recusa a cristalizar seus erros em dogmas teológicos, e se nega a repetir mecanicamente o passado. Em vez disso, transforma seus fracassos em escola de aprendizagem viva.

O Partido Comunista, enquanto vanguarda organizada da classe operária, é a forma mais desenvolvida desta ética do rigor dialético. Sua capacidade de crítica e autocrítica é expressão da sua maturidade teórica, da sua ligação orgânica com as massas e da sua capacidade de conduzir a transformação da realidade com plena consciência de suas mediações. A crítica, no interior do Partido, não é expressão de hostilidade pessoal, mas de solidariedade revolucionária; não é julgamento, mas compromisso com a verdade — é um ato de amor. A autocrítica, longe de enfraquecer a autoridade do Partido, a fortalece, pois demonstra sua capacidade de aprender, corrigir, avançar.

A história do Movimento Comunista Internacional (MCI) é pródiga em exemplos nos quais a autocrítica não foi apenas um gesto de humildade, mas um ponto de inflexão na luta. Lênin, ao analisar a Revolução de 1905 e suas derrotas, produziu uma das autocríticas mais profundas do marxismo, reconhecendo a insuficiência da atuação bolchevique no campo e a necessidade estratégica de uma sólida aliança operário-camponesa. Stálin, em “Fundamentos do Leninismo” (1924), retoma e sistematiza essa lição, explicitando que a vitória da revolução socialista na Rússia só foi possível porque o proletariado assumiu a direção na questão agrária, incorporando as demandas camponesas ao programa revolucionário. Sem essa correção histórica, a base social do poder soviético teria ruído.

Mais recentemente, podemos citar a autocrítica do movimento comunista frente à questão LGBT+. Durante décadas, a homossexualidade foi vista sob preconceitos herdados do moralismo burguês e da pseudociência médica, o que limitou a ação revolucionária junto a amplos setores oprimidos. Com a retirada da homossexualidade das listas de doenças pela OMS e o avanço das lutas democráticas, vários partidos comunistas, especialmente em Cuba, reconheceram esses erros e romperam com visões atrasadas. O resultado foi um salto qualitativo: a incorporação ativa da pauta LGBT+ no programa socialista, culminando, em 2022, no novo Código da Família cubano — um dos mais progressistas do mundo, que reconhece plenamente direitos de pessoas LGBT+, famílias diversas e igualdade de gênero. Esse avanço foi produto direto da autocrítica, que abriu caminho para uma política mais ampla, mais inclusiva e mais fiel aos princípios da emancipação humana.

A verdade, portanto, não é uma essência revelada, mas uma construção histórica. Ela não repousa sobre o medo de errar, mas sobre a coragem de enfrentar os próprios erros com a força organizada da teoria revolucionária. O Partido que reconhece e supera seus erros torna-se invencível. O que os esconde, condena-se à morte lenta da estagnação. O erro, no marxismo, deixa de ser um tabu e se converte numa etapa da marcha coletiva do conhecimento revolucionário rumo à emancipação da humanidade. Eis o salto qualitativo: do erro como condenação ao erro como escola. Da crítica como censura à crítica como elevação. Da autocrítica como dor à autocrítica como força.

A crítica e a autocrítica, portanto, são o espírito vivo do Partido, sua respiração interna, o sinal de que está em movimento, em transformação, em luta — contra o mundo burguês e contra os resíduos burgueses em si mesmo. A autocrítica é a alma do bolchevismo. E é nessa alma crítica que reside o segredo de nossa força invencível.

Marx, Engels e a crítica da crítica idealista (Bauer, Feuerbach)

A maturação do método revolucionário da crítica, como concebido por Marx e Engels, não se deu como uma simples ruptura abrupta com os sistemas filosóficos anteriores, mas como um combate prolongado e profundo no seio da própria tradição teórica europeia. A crítica marxista nasce como crítica da crítica — não apenas como negação dos conteúdos errôneos, mas como superação dialética de suas formas, seus limites e suas determinações sociais ocultas. Ao confrontar-se com Bauer e com os diversos representantes do idealismo tardio, Marx e Engels construíram uma concepção nova: a crítica revolucionária enraizada na prática material.

Bruno Bauer, com sua “Crítica Crítica”, encarnava de modo extremo o descolamento da teoria com relação à realidade. Para ele, a massa era a expressão da baixeza, do erro, da confusão. A crítica, ao contrário, era o refúgio do puro, do elevado, do absoluto. Trata-se aqui de uma forma particular de idealismo arrogante: a adoração da forma vazia, a reiteração narcísica de si mesma, que substitui a transformação do mundo pela autocontemplação do espírito. Marx e Engels, em “A Sagrada Família” (1844), não apenas ridicularizam essa postura, mas demonstram seu conteúdo de classe: trata-se do pensamento da pequena-burguesia radicalizada, que teme o movimento real e se refugia em uma superioridade fictícia.

Feuerbach, embora tenha dado um passo importante ao romper com o teísmo e colocar o “homem” no lugar de Deus, permaneceu no campo da abstração contemplativa. Sua “essência humana” é uma categoria imóvel, a-histórica, que não se concretiza em nenhuma formação social real. Como mostrou Marx nas “Teses sobre Feuerbach” (1845), a grande limitação do materialismo feuerbachiano está em sua incapacidade de captar a atividade prática como fundamento da realidade social. O homem de Feuerbach pensa e sente, mas não age, não produz, não transforma. É um espelho, não uma força.

A crítica de Marx a Feuerbach e a Bauer não é apenas uma correção teórica: é a fundação de um novo método. Ela desloca a crítica do céu das ideias para o chão da luta. O erro não é mais uma falha de lógica ou uma impureza da consciência: é uma expressão ideológica das contradições da prática social. O conhecimento não é um espelho neutro, mas uma forma ativa de intervenção. O pensamento não paira sobre o mundo: ele é um momento exato do mundo, de sua prática social.

Essa transição da crítica idealista à crítica revolucionária implica também uma ruptura com o moralismo. Toda crítica fundada na superioridade ética abstrata está condenada a paralisar-se. O comunista não se constrói com acusações e confissões arenosas, mas com análises rigorosas e com retificações organizadas. A crítica revolucionária não é subjetiva, não é puramente argumentativa: ela tem objetivos, tem método, tem direção.

Do mesmo modo, Marx e Engels combatem o idealismo — essa doença do pensamento burguês que imagina que a realidade é apenas uma projeção da consciência imanente, do espírito anterior à matéria. A crítica revolucionária só pode ser objetiva se for social. Ela se funda na análise das contradições materiais da realidade, não na sensibilidade do indivíduo.

E, finalmente, eles denunciam o messianismo — a tendência de substituir a luta coletiva pela espera de um salvador ou de um momento mágico de redenção. Contra essa ideologia religiosa mascarada de radicalismo, a crítica marxista-leninista afirma a necessidade da organização, da disciplina, da acumulação histórica de forças.

A crítica revolucionária, forjada por Marx e Engels, é o mais alto grau de consciência teórica de uma classe em luta. Não é a crítica de um homem contra outro, nem de um pensamento contra outro, mas da humanidade que luta contra sua alienação, de um proletariado que se nega como classe explorada para se afirmar como sujeito da libertação universal. E é nessa crítica, plena de coragem, de método, de humildade e de combatividade, que o Partido Comunista encontra sua alma: a alma da transformação permanente, do combate à rotina, à degeneração, ao dogmatismo, ao culto da infalibilidade.

Pois um Partido incapaz de se criticar, será sempre incapaz de criticar o mundo. E um Partido que abandona a autocrítica, converte-se rapidamente em seita, em simulacro, em caricatura do passado. Eis por que a crítica — viva, concreta, dialética — é o coração batente do marxismo.

A URSS de Lênin e Stálin e a Albânia Socialista de Enver Hoxha

A transição do método da crítica revolucionária, enquanto categoria filosófica e princípio teórico, para uma prática político-organizativa concreta e de massas, encontrou sua expressão histórica mais avançada nas experiências da União Soviética sob a direção de Lênin e Stálin, bem como na Albânia Socialista dirigida por Enver Hoxha. Nesses dois marcos inegáveis da construção socialista, a crítica e a autocrítica deixaram de ser orientações teóricas abstratas ou apelos morais genéricos, tornando-se instrumentos orgânicos, pedagógicos, organizativos e estratégicos do Partido Comunista em sua função dirigente da sociedade e da economia durante a complexa transição ao socialismo.

Lênin, com sua compreensão profundamente materialista das leis objetivas da luta de classes, foi o primeiro grande formulador prático da autocrítica como política consciente e sistemática de Partido. Em seus textos, discursos e intervenções partidárias, é possível identificar a preocupação constante com a manutenção da ligação viva entre a direção e a base, com a vigilância permanente contra as tendências burocráticas, o oportunismo, o cretinismo parlamentar e o espírito de acomodação pequeno-burguês. A autocrítica leninista surge não como apêndice moral ou como um exercício meramente subjetivo, mas como uma exigência objetiva, imposta pela dinâmica contraditória da luta de classes refletida inevitavelmente no interior do Partido. Ela constitui um método de elevação da consciência política das massas e da capacidade dirigente do proletariado organizado, um instrumento dialético para corrigir os desvios de linha, de política e de prática. A cada congresso, a cada balanço, a cada virada tática, a exigência de reconhecer erros, estudá-los e superá-los era reafirmada como condição para a vitória.

Stálin, por sua vez, não apenas deu continuidade a essa concepção leninista, mas a desenvolveu com rigor teórico e profundidade organizativa, elevando a autocrítica ao patamar de princípio de Estado e método de direção proletária. Em obras fundamentais como “Fundamentos do Leninismo” (1924) e no histórico artigo “Contra a Vulgarização da Palavra de Ordem da Autocrítica” (1928), Stálin combateu com dureza a tendência, então já visível, de transformar a autocrítica numa encenação ritual, uma formalidade administrativa ou uma penitência mecânica, desprovida de conteúdo transformador. Para ele, a autocrítica só teria valor se estivesse intrinsecamente ligada à ação prática, à retificação efetiva dos erros e desvios, à reorganização concreta dos métodos de trabalho e, principalmente, à participação ativa e consciente das massas proletárias na identificação dos problemas e na proposição das soluções. A vulgarização da autocrítica, dizia Stálin, não era um problema apenas de método, mas uma ameaça à revolução, um sintoma da penetração de hábitos pequeno-burgueses e burocráticos no organismo do Partido.

Stálin também introduziu uma categoria central à compreensão do papel da crítica no socialismo: a intensificação da luta de classes durante o desenvolvimento do Estado proletário. Conforme a velha ordem é desmantelada e as bases do socialismo são edificadas, as classes exploradoras, ainda existentes sob formas latentes ou abertamente hostis, intensificam suas tentativas de sabotagem, infiltração e resistência. No informe “O Desvio de Direita no PCUS(B) da URSS” (1929), Stálin afirmou que quanto mais avançava a construção socialista, mais se agudizava a luta de classes. Essa intensificação tornava inevitável, como sua contrapartida dialética, o aprofundamento e a generalização da crítica e da autocrítica como formas organizativas de defesa, correção e avanço político. A crítica, nesse sentido, deixava de ser apenas uma ferramenta de gestão interna para tornar-se uma expressão viva da luta de classes em seu plano ideológico e político.

A institucionalização de formas concretas de crítica pública foi um dos desdobramentos mais visíveis dessa política na União Soviética. As “sessões de crítica” (молния), caracterizadas por sua rapidez, contundência e mobilização imediata, e os cartazes públicos que pejorativamente ficaram conhecidas no imaginário ocidental como os “quadros da vergonha” (доска позора), onde os desvios de conduta (por exemplo: roubo, brigas, arruaça, embriaguez, jogar cigarros no trilho do metrô, ir à igreja etc.) erros de gestão e atitudes burocráticas eram expostos publicamente, tornaram-se ferramentas de pedagogia revolucionária de massa, onde existia um elemento, inclusive, humorístico no processo de reeducação. Essas formas de exposição pública tinham um objetivo claro: romper com o espírito de inércia, provocar a reflexão ativa entre as massas, os militantes e dirigentes, mobilizar a consciência coletiva em torno da correção dos desvios e prevenir a cristalização de práticas antiproletárias. Não era um simples espetáculo de constrangimento, mas um processo educativo coletivo, que tensionava a luta entre a nova civilidade proletária no socialismo e os resíduos ideológicos herdados do passado burguês e feudal.

Na Albânia Socialista, sob a direção do camarada Enver Hoxha, o princípio da crítica e da autocrítica adquiriu um caráter ainda mais profundamente popular e massivo. As “fletërrufe” (grandes cartazes), afixadas em fábricas, escolas, cooperativas agrícolas e locais de trabalho, permitiam ao povo trabalhador denunciar, de baixo para cima, os erros, abusos e desvios de qualquer dirigente, quadro intermediário ou mesmo de seus próprios colegas de base. As “bodeci”, assembleias populares de discussão crítica, permitiam o aprofundamento coletivo dos debates, garantindo que a crítica se transformasse em instrumento de elevação da consciência política, de correção prática dos erros e de fortalecimento da unidade e vigilância revolucionária. Ao contrário da cultura de medo e silêncio que caracteriza os aparelhos burocráticos da democracia burguesa, na Albânia socialista a crítica era uma prática viva, vibrante e orgânica, uma extensão direta da linha de massas.

Importante destacar que esses mecanismos de crítica pública não se reduziam a expedientes de controle, coerção ou disciplinamento superficial. Eram, na realidade, expressões concretas da linha de massas do Partido, da sua vinculação orgânica com o povo e da sua confiança inquebrantável na capacidade das massas de assumir um papel ativo e consciente na construção socialista. A pedagogia da crítica e da autocrítica tinha como eixo central a formação de um novo tipo de ser humano: o Homem Novo socialista, capaz de refletir criticamente sobre a realidade objetiva, sobre suas próprias práticas e sobre as contradições vivas de seu tempo, superando-as conscientemente por meio da luta e da organização.

Do ponto de vista da lógica dialética, a crítica e a autocrítica nas experiências soviética e albanesa exemplificam, em nível organizativo e social, a aplicação rigorosa da lei da unidade e luta dos contrários. A unidade interna do Partido e do Estado socialista, condição de sua força e coesão, só podia ser alcançada e sustentada mediante a luta incessante entre os elementos proletários e os elementos pequeno-burgueses em seu seio. A unidade era, portanto, sempre relativa, transitória, temporária, enquanto a luta era permanente, incessante e motor essencial do desenvolvimento. Não se tratava de um equilíbrio mecânico, mas de uma unidade dialética, forjada no combate contra as tendências antagônicas que nasciam inevitavelmente das condições materiais da transição socialista.

Evidentemente, nem todas as experiências foram isentas de erros. Existiram, como seria inevitável num processo social de tamanha complexidade, episódios de críticas mal fundamentadas, denúncias infundadas, oportunismo e até mesmo injustiças pontuais. Mas o próprio método da crítica e autocrítica — quando aplicado com rigor dialético, com base nos princípios do materialismo histórico e no profundo vínculo com as massas — continha em si os mecanismos corretivos para combater esses desvios. A chave para impedir a degeneração da crítica em espetáculo vulgar, ou sua transformação em instrumento de ajuste de contas pessoais, residia na elevação constante da formação teórica e política das massas e dos quadros, na difusão meticulosa do marxismo-leninismo e no fortalecimento sistemático da democracia proletária interna. O Partido era educado a reconhecer os perigos da formalização vazia da crítica, do ritualismo sem transformação, e a combater tais tendências com a mesma firmeza com que combatia o oportunismo político.

Lênin, Stálin e Enver Hoxha foram unânimes em uma lição fundamental: a autocrítica não é um fim em si mesma, não é um ritual catártico, tampouco um confessionário de penitência religiosa ou moralista, mas um método orgânico de construção revolucionária, um instrumento de fortalecimento da unidade ideológica, da disciplina consciente e da capacidade política do Partido de avançar e corrigir seus próprios erros no curso da luta de classes. Um Partido que teme a crítica, que foge da autocrítica ou que relega a análise dos erros a um plano secundário está condenado à burocratização, ao afastamento das massas e, inevitavelmente, à sua liquidação histórica. Em contrapartida, um Partido que transforma os seus erros em escolas de formação, que faz de cada falha uma plataforma para novos avanços, que aprende, corrige e supera, está forjando os alicerces de uma direção revolucionária verdadeiramente proletária e de um futuro socialista vitorioso.

Esta é, portanto, a essência pedagógica, organizativa e política da crítica e da autocrítica nas experiências socialistas da União Soviética e da Albânia: um processo permanente de negação determinada e superação dialética, de luta consciente contra os desvios, de construção de uma direção de aço, forjada no fogo da luta de classes e temperada na autocrítica revolucionária. Um legado vivo, intransponível e insubstituível para todos aqueles que ousam lutar, ousam vencer e ousam transformar o mundo pela prática revolucionária consciente e autocrítica. O ensinamento que ecoa dessas experiências históricas é claro: só um Partido que se organiza como vanguarda autocrítica, profundamente enraizado nas massas e armado com o método dialético pode ser digno da missão histórica de libertar a humanidade da exploração e da opressão de classes.

A crítica no Partido Comunista não pode, em hipótese alguma, ser confundida com um tribunal de moral pequeno-burguesa ou com um espetáculo de linchamento psicológico. Ela é, antes de tudo, uma categoria política, um mecanismo de desenvolvimento coletivo e de transformação objetiva da realidade organizativa, ideológica e prática do Partido. Sua função essencial é elevar o nível político e moral dos militantes, corrigir desvios, orientar a prática para novos patamares de consciência revolucionária. Toda crítica que não produz esse movimento ascensional, toda crítica que se encerra no ataque pessoal, na chacota, na execração pública ou na chantagem emocional, é uma perversão burocrática da dialética revolucionária.

IV. A CRÍTICA E A AUTOCRÍTICA NO PARTIDO COMUNISTA

Função organizativa, pedagógica e política da crítica

Historicamente, o bolchevismo sempre combateu duas tendências perigosas: de um lado, o liberalismo pequeno-burguês, que recusa a crítica, encobre os erros, protege os “companheiros de célula”, buscando harmonia falsa e unidade de fachada; de outro lado, o moralismo repressivo, herança da cultura punitiva e religiosa das classes dominantes, que transforma a crítica em flagelação pública, em destruição emocional, em sadismo litúrgico. Ambos os desvios são inimigos da pedagogia proletária.

Lênin, em sua luta contra o burocratismo e o espírito de aparato, enfatizou que a crítica deve ser um “processo de educação de massas”, nunca um instrumento de humilhação individual. Para ele, expor o erro significava colocar o problema no plano coletivo, para que toda a organização pudesse aprender com o equívoco e, ao mesmo tempo, ajudar o camarada a superá-lo. A crítica não é a sentença de um juiz, mas a intervenção de um educador político. Não se busca o arrependimento litúrgico do catolicismo, mas uma justa correção revolucionária.

Stálin, ao desenvolver a autocrítica como método organizativo, foi igualmente categórico: a crítica que não resulta em mudanças reais é um engodo; a crítica que humilha, paralisa e desmoraliza, é uma arma contrarrevolucionária nas mãos da burocracia, é uma vulgarização da crítica. Por isso, em sua luta contra o chamado “otimismo oficial”, Stálin alertava para o risco de encobrir os erros com relatórios falsos, números maquiados e elogios automáticos. Mas também combatia aqueles que transformavam a crítica em espetáculo de execração pública, pois compreendia que o objetivo da crítica é reorientar, reconstruir, elevar.

Assim, é fundamental afirmar com toda a energia: a crítica revolucionária é dura com os erros, mas justa com os camaradas. É intransigente com os desvios, mas generosa com os homens e mulheres que erram e estão dispostos a corrigir-se. Uma crítica que não cumpre esse papel deixa de ser marxista e passa a ser um resíduo pequeno-burguês de ressentimento ou uma simulação burocrática de atividade política.

Se a crítica é um ato de construção coletiva, a autocrítica é o mais alto grau de maturidade política de um dirigente revolucionário. Aquele que dirige homens e mulheres na luta de classes, aquele que orienta o movimento de massas, aquele que conduz tarefas de direção partidária, só pode manter sua autoridade moral e política se demonstrar, na prática, a capacidade de reconhecer os próprios erros, de expô-los diante dos camaradas e de se transformar à luz da experiência.

O grande Lênin, ao longo de sua vida revolucionária, não hesitou em reconhecer os erros do Partido, como na questão da Paz de Brest-Litovsk, nas vacilações durante a NEP ou nos balanços críticos das etapas da Revolução. Sua autoridade não diminuiu por isso — ao contrário, fortaleceu-se. O dirigente que não teme a autocrítica dá o exemplo vivo de que ninguém, por mais alta que seja sua posição, está acima da análise dialética da realidade.

O camarada Stálin, por sua vez, elevou a autocrítica ao nível de uma categoria organizativa essencial. Novamente no texto clássico “Contra a Vulgarização da Palavra de Ordem da Autocrítica” (1928), ele afirma com clareza que a autocrítica é a “garantia de saúde do Partido”, o “oxigênio político” da construção socialista. Sem autocrítica, os erros se acumulam, os desvios se institucionalizam, o burocratismo prolifera como um tumor incontrolável.

Mais do que um ato individual, a autocrítica deve ser uma escola política para todo o coletivo. Quando um dirigente assume publicamente seu erro, ele cria condições para que todos aprendam com sua experiência, fortalece a unidade pela verdade, desmonta o culto à infalibilidade e combate o carreirismo. A autocrítica pública é um gesto de coragem revolucionária, de profunda confiança na capacidade do Partido e das massas de compreender, perdoar e, sobretudo, corrigir.

O camarada Enver Hoxha, ao longo da construção do socialismo na Albânia, também destacou o papel pedagógico da autocrítica na formação de dirigentes com moral proletária. Para ele, a pior doença que poderia afetar o Partido era o medo de reconhecer os próprios erros. Em suas reuniões com quadros, o camarada Enver Hoxha insistia: “Melhor um dirigente que reconhece e corrige um erro, do que aquele que, por medo da crítica, arrasta o coletivo para o desastre”.

Nesse sentido, a autocrítica não é humilhação pública, mas aprendizado coletivo. Ela não é um espetáculo para o regozijo dos ressentidos, mas uma lição viva de dialética, de luta interna contra os desvios e de construção de uma direção revolucionária à altura das tarefas históricas.

A autocrítica, quando praticada com honestidade, método e orientação política justa, transforma o erro individual numa vitória coletiva. Ela é o cimento ético da direção proletária, o elo entre o Partido e as massas, a ponte entre o presente e o futuro socialista.

A experiência histórica do Partido Bolchevique sob a direção de Lênin demonstra de forma incontestável que a correção dos erros não é apenas uma necessidade interna de fortalecimento organizativo, mas também uma exigência de caráter estratégico para manter e ampliar a confiança das massas na direção revolucionária. Lênin compreendia que os erros do Partido não poderiam ser corrigidos a portas fechadas, longe da vista da classe operária. Pelo contrário, a correção pública dos erros era, para ele, uma demonstração de força moral e política, um sinal inequívoco de maturidade revolucionária e de compromisso com a verdade objetiva.

A imprensa partidária, os jornais, os boletins, os informes e até mesmo as assembleias e plenárias públicas eram espaços fundamentais para o exercício dessa pedagogia revolucionária. As resoluções do Partido eram publicadas com suas críticas e autocríticas, os balanços eram feitos de maneira aberta, e as retificações eram conhecidas por todos os militantes e, muitas vezes, pelo conjunto da classe trabalhadora. Lênin compreendia que só assim seria possível transformar o Partido numa verdadeira escola de comunismo, onde o exemplo educativo da direção estimularia a franqueza, a disciplina consciente e a iniciativa criadora da base. Esse método não apenas corrigia os erros, mas também prevenia novos desvios, ao criar uma cultura de vigilância crítica permanente entre os militantes.

Stálin compreendia que o “otimismo oficial” era uma expressão ideológica da degeneração burocrática, um reflexo de interesses corporativos de aparelhos locais, de dirigentes preocupados com sua autopreservação política e com sua imagem pessoal diante das instâncias superiores. Contra isso, Stálin mobilizou uma verdadeira campanha nacional de autocrítica, exigindo que os erros fossem expostos não apenas nas células e nos núcleos internos, mas também na imprensa partidária, nos jornais de fábrica, nos murais públicos e nos congressos de massas.

O PCUS(B) publicou, em seu órgão central, o Pravda (A Verdade), uma série de autocríticas de comitês locais, de dirigentes de fábricas e de kolkhozes, promovendo uma verdadeira pedagogia da correção prática dos erros. Essa linha de conduta foi amplamente absorvida pelo PTA, sob a direção do camarada Enver Hoxha, que deu continuidade e aperfeiçoou essa prática com mecanismos como as “Fletërrufe” e as sessões de crítica pública nas organizações de base.

O camarada Enver Hoxha, em seu célebre discurso “Pelo aprofundamento da revolução no Partido e no Estado” (1967), destacou que a crítica e a autocrítica públicas, levadas às massas, serviam para desmascarar os burocratas, para fortalecer a democracia socialista e para criar um ambiente de vigilância revolucionária contínua. Para ele, esconder os erros era trair o povo. Tornar a crítica um ato meramente formal, reservado aos corredores dos comitês, era um caminho seguro para a degeneração.

Por isso, devemos combater com firmeza a concepção pequeno-burguesa que insiste em manter a crítica e a autocrítica restritas aos círculos internos, sob o argumento de “não expor o Partido” ou “preservar a autoridade da direção”. A maior autoridade que o Partido pode ter é a autoridade moral conquistada pela prática honesta da autocrítica pública, pela coragem de reconhecer e corrigir seus erros diante do povo.

A autocrítica pública, longe de enfraquecer o Partido, é a condição objetiva para sua renovação permanente, para sua fusão viva com as massas e para a elevação de sua autoridade política. A prática marxista-leninista da autocrítica é, portanto, não apenas uma questão de método interno, mas uma expressão da linha de massas, da intensificação consciente da luta de classes no socialismo e da democracia proletária aplicada à construção do socialismo. Quanto mais avança a luta de classes, quanto mais se aguça a resistência dos elementos burgueses, mais urgente se torna o desenvolvimento de uma cultura de crítica e autocrítica como instrumento de transformação e de defesa revolucionária da ditadura do proletariado.

O dilema da exposição nas redes digitais

A atual fase da luta de classes, marcada pela hegemonia ideológica da burguesia em escala global e pela expansão dos meios de comunicação digital, nos apresenta uma nova e complexa configuração do terreno político-ideológico. As redes digitais, embora ofereçam canais de difusão, mobilização e propaganda, estão profundamente marcadas pela lógica do capital, pela produção industrial da alienação e pela fabricação em massa de subjetividades atomizadas, individualistas e emocionalmente reativas. Seria uma ilusão idealista e oportunista conceber esses espaços como neutros ou “populares” em essência. Ao contrário, eles são verdadeiros campos de batalha da superestrutura, onde o algoritmo substitui o mercado clássico como mediador da produção e circulação ideológica.

Neste ambiente, a crítica e a autocrítica revolucionárias enfrentam um duplo desafio: por um lado, devem romper com a tendência pequeno-burguesa do Partido de esconder seus erros por temor ao julgamento e exposição na internet; por outro, precisam se diferenciar radicalmente da cultura de cancelamento, do linchamento digital e do moralismo punitivo que estruturam a comunicação pública sob o neoliberalismo. A ausência de autocrítica pública por parte das direções partidárias só fortalece o domínio desta segunda tendência. Quando o Partido se cala sobre seus erros, quando limita a crítica aos círculos internos, entrega de bandeja às pessoas com a consciência da pequena-burguesia digitalizada o monopólio da denúncia. E, como sabemos, a denúncia despolitizada é um instrumento que, longe de transformar, apenas reforça o ciclo da desconfiança e da desmoralização coletiva — muitas vezes, afastando pessoas que estivessem dispostas a se associar ao Partido ou às frentes de massas.

A experiência histórica dos Partidos Comunistas revolucionários, como o PCUS(B) de Lênin e Stálin e o PTA do camarada Enver Hoxha, nos ensina que a autocrítica pública, quando conduzida de forma organizada, pedagógica e estratégica, não apenas não enfraquece o Partido, mas o fortalece diante das massas. As “Fletërrufe” na Albânia, os murais de autocrítica na URSS e as resoluções abertas dos Congressos Bolcheviques eram expressões materiais de um princípio político superior: o Partido só adquire autoridade moral e política se for capaz de ser o primeiro a apontar seus próprios erros, de desmascarar suas próprias ilusões e de corrigir suas próprias linhas quando estas se descolam da realidade objetiva.

Entretanto, é necessário fazer uma distinção metodológica intransigente entre a crítica organizada e o denuncismo digital. O Partido não pode permitir que suas fileiras se adaptem ao espírito fofoqueiro das redes digitais, com sua cultura de vaidade, de exibição narcisista, de caça-cliques, de iscas de ódio, e de pânico moral. A crítica revolucionária, por definição, não é espetáculo, uma lavagem de roupa-suja, um teatro de ofensas improvisadas, mas processo pedagógico onde todo o Partido, todo o coletivo pensam com os indivíduos que erraram. Não é uma resposta emocional de um indivíduo ofendido, mas a expressão consciente de uma necessidade política coletiva. Aqui, a crítica deve partir da análise das contradições objetivas, das leis do desenvolvimento social, dos interesses de classe em jogo. Não pode se reduzir a uma verborragia de adjetivos, a uma coleção de juízos morais ou à produção de dossiês de difamação.

O documento do Partido Comunista Português (PCP), intitulado “Se Navegares nas Redes, Camarada” (2021), nos dá pistas importantes para um método correto de intervenção comunista na internet. Ali, afirma-se com clareza que a intervenção digital não substitui a ação de massas direta, e que a prioridade revolucionária permanece nos locais de trabalho, estudo e moradia. O ambiente virtual deve ser visto como uma frente de batalha complementar, onde o Partido precisa intervir com disciplina, com método, com centralismo democrático e com vigilância ideológica rigorosa.

O Partido deve, portanto, sistematizar sua prática de crítica e autocrítica pública, transformando-a em instrumento de elevação política do conjunto das massas, utilizando de maneira criativa e disciplinada todos os seus aparelhos ideológicos: a imprensa escrita, os sites oficiais, os boletins internos e, quando necessário, suas plataformas nas redes digitais para anunciar esses comunicados. Toda crítica pública deve ser contextualizada, politizada, historicamente situada e orientada para a superação, jamais para a destruição moral dos camaradas que erraram. Da mesma forma, é dever dos militantes comunistas aprender a distinguir entre o camarada em processo de correção revolucionária e o elemento hostil e degenerado que, depois de amplamente advertido, opta conscientemente pela sabotagem da luta proletária.

Mais do que nunca, o Partido deve investir na formação política e ideológica dos seus quadros para que saibam intervir nas redes sem reproduzir a lógica da gritaria moralista. Devemos produzir conteúdos teóricos que exponham nossos erros com dignidade revolucionária, que mostrem às massas que somos um organismo vivo, com capacidade de aprender, de corrigir-se e de avançar, sempre com a perspectiva de entrar em um novo patamar qualitativo, de superar a fofoca e o denuncismo arrogante e prepotente. Isso exige a construção de uma política de comunicação pública voltada para a pedagogia da autocrítica. Não podemos nos deixar paralisar pela chantagem moral do inimigo de classe, nem cair na tentação oportunista de fingir que somos infalíveis.

A superação desta contradição — entre o medo de expor os erros e o risco de cair no denuncismo — só pode ser realizada pela aplicação criativa e rigorosa do método marxista-leninista da crítica e autocrítica, mediada pela análise materialista das novas formas de comunicação de massa sob o capitalismo. Somente assim poderemos transformar até mesmo o terreno hostil das redes em um espaço de luta ideológica a favor da revolução proletária.

A diferença entre crítica interna e crítica pública

O Partido Comunista, enquanto vanguarda organizada da classe operária, não se constrói sobre a base do silêncio cúmplice nem sobre a lógica da execração pública. Ele se edifica na tensão criadora entre a crítica e a unidade, entre a disciplina e a franqueza, entre a lealdade partidária e a transparência para com as massas. Compreender dialeticamente a diferença do momento entre crítica interna e crítica pública é, portanto, um imperativo não apenas metodológico, mas estratégico, pois define a capacidade do Partido de corrigir-se sem se autodestruir, e de fortalecer sua ligação orgânica com o povo sem expor seus quadros a campanhas despolitizadas de linchamento social.

A crítica interna é o instrumento de trabalho cotidiano da organização. É nela que se examinam, com rigor e honestidade, as falhas de orientação, os desvios de linha, as insuficiências táticas e as condutas individuais que desaceleram ou comprometem a luta coletiva. Esse espaço é protegido, mas não é um esconderijo: nele, a palavra franca é obrigatória, a análise concreta é norma, e o objetivo é a retificação revolucionária, não a punição. Ao contrário do que imaginam os burocratas, a crítica interna não é uma formalidade ritual; é um laboratório político onde se forja o amadurecimento dos quadros e se prepara o terreno para as retificações públicas que fortalecem a confiança popular.

Já a crítica pública, que se dirige ao conjunto das massas, possui uma função política qualitativamente distinta. Seu papel não é apenas corrigir o erro, mas demonstrar para todo o povo que o Partido é capaz de aprender com a realidade objetiva, que não teme reconhecer suas falhas e que possui um método para superá-las. Quando corretamente conduzida, ela aumenta a autoridade política e moral da vanguarda, cria uma pedagogia coletiva e educa tanto os militantes quanto os simpatizantes sobre o método marxista de apreensão da realidade. Mas se malconduzida — se orientada por critérios moralizantes, por espetacularização pessoal ou por motivações fracionistas — transforma-se em denuncismo, em munição gratuita para o inimigo de classe e em corrosão da unidade partidária.

É nesse ponto que se impõe uma luta intransigente contra a prática dos chamados “exposed”, que se disseminou nas redes digitais sob a influência direta da cultura individualista pequeno-burguesa. O “exposed” parte do pressuposto subjetivista de que o erro é um desvio moral isolado, um sinal de má índole a ser punido com execração, e não um produto concreto das contradições históricas e sociais nas quais cada indivíduo é formado. Tal concepção nega, na prática, a lei fundamental da dialética da transformação — a passagem do velho ao novo por meio da luta permanente dos contrários — substituindo-a por um tribunal moral onde a humilhação pública é vista como fim em si mesma, onde se buscam hipocrisias, ações moralistas e engajamento de quem às protagoniza, onde pessoas fora da estrutura partidária se sentem no direito de ditar, a partir do seu ponto de vista individual, sua tutela sobre as ações do Partido a partir de um prisma puramente moral. Nessa lógica, não há espaço para a superação; o indivíduo e o Partido são congelados nos erros, condenado à esterilidade política, e a coletividade perde a oportunidade de formar e transformar um militante em um quadro mais sólido.

O Partido deve combater essa tendência não apenas no discurso, mas na forma como conduz seus próprios processos de crítica. Não cabe à organização abrir campanhas de denúncias vazias, expor militantes de maneira seca, ríspida ou arrogante, nem alimentar uma atmosfera punitivista que substitua a política pela moral. A crítica revolucionária precisa ser construída sobre uma ética proletária: íntegra, honesta, fundamentada na análise objetiva das causas e consequências do erro, e orientada para a reintegração e o fortalecimento do coletivo. A transparência, quando necessária, deve caminhar lado a lado com a preservação da unidade partidária e com a disciplina consciente, entendendo que a disciplina não é obediência cega, mas compromisso coletivo com a linha e os objetivos estratégicos da organização.

Nessa perspectiva, a unidade em meio à contradição — a unidade dos contrários — é sempre transitória e relativa, servindo como base momentânea para avançar na luta permanente contra os erros e desvios. A luta dos contrários, isto é, a disposição contínua de confrontar o erro e superá-lo, não cessa nunca. Mas, para que essa luta seja frutífera, ela deve estar submetida à estratégia da revolução, e não ao impulso moralizante do momento. É a compreensão desse movimento dialético que permite ao Partido manter-se vivo, combativo e profundamente ligado às massas, sem cair nas armadilhas tanto do silêncio burocrático quanto do denuncismo autofágico.

Quando fazer a autocrítica pública

A crítica pública não deve ser confundida com espetáculo punitivo, nem sua prática pode se tornar uma resposta emocional ou desorganizada diante de erros reais ou percebidos. Ela é uma arma pedagógica e estratégica que deve ser manejada com método, ética e clareza política. E, por isso, exige critérios rigorosos para sua aplicação.

A regra fundamental que orienta sua necessidade é: se o erro foi cometido no movimento de massas, diante do povo, sua correção também deve ser pública, pedagógica e organizada. Trata-se de uma exigência de honestidade política, de sintonia entre palavras e ações, de preservação da autoridade do Partido diante de seus militantes e o povo. Mas essa autocrítica pública deve ocorrer não com intuito de punir ou humilhar, e sim de reconstruir a confiança, elevar o nível de consciência política das massas, e reforçar o vínculo já estabelecido. Aqui, a forma como a crítica é feita é tão importante quanto o conteúdo: a ética, o método, o espírito construtivo e a verdade devem guiar cada linha, cada palavra, cada explicação.

A crítica pública deve ser feita sempre pelos meios do Partido, com o devido controle, orientação política e respaldo organizativo após as discussões internas. Isso significa que não é admissível a exposição moralizante, individualista e emocional de erros por meio de redes sociais, grupos informais ou boatos. O Partido deve assumir institucionalmente o processo, mesmo que o erro tenha sido individual, porque, como ensinava Bertolt Brecht:

Mas quem é o partido?

Ele fica sentado em uma casa com telefones?

Seus pensamentos são secretos, suas decisões

desconhecidas?

Quem é ele?

Nós somos ele.

Você, eu, vocês — nós todos.

Ele veste sua roupa, camarada, e pensa com a sua cabeça

Onde moro é a casa dele, e quando você é atacado

ele luta.

Mostre-nos o caminho que devemos seguir, e nós

O seguiremos como você, mas

Não siga sem nós o caminho correto

Ele é sem nós

O mais errado.

Não se afaste de nós!

Podemos errar, e você pode ter razão, portanto

Não se afaste de nós!

Que caminho curto é melhor que o longo, ninguém

nega

Mas quando alguém conhece

E não é capaz de mostrá-lo a nós, de que nos serve

sua sabedoria?

Seja sábio conosco!

Não se afaste de nós!

A crítica pública é sempre, ao fim, um ato coletivo. Mesmo diante de uma falha individual, a tarefa é reconstruir o indivíduo com a força do coletivo, não o estraçalhar sob os escombros da moral burguesa ou de um exílio reverberado pela vaidade.

Da mesma forma, é preciso evitar que o momento da crítica pública — mesmo quando necessária — se converta em fuzilamento moral ou destruição da autoestima de quem errou. A crítica que humilha não educa; apenas isola e envergonha. A autocrítica, para ser revolucionária, deve ser um caminho de reconstrução do militante como sujeito consciente de sua responsabilidade social, com o povo que o criou e com o Partido que o educa. E esse processo só pode ser eficaz se houver acompanhamento político, escuta ativa, formação, e disciplina revolucionária. O Partido corrige para elevar — jamais para descartar. A pessoa que erra deve saber que o Partido está com ela para que se transforme, e que o erro cometido não a define eternamente.

Já nos casos em que o erro pertence à organização interna, onde estão envolvidas formas de funcionamento, estrutura, tática, métodos de direção, então a crítica deve se realizar prioritariamente nos espaços internos do Partido, entre camaradas, com franqueza e firmeza, mas com espírito de coesão, com o objetivo central de formar sínteses e chegar à máxima unanimidade possível. Aqui, a crítica interna é escudo e espada: escudo contra a desagregação e o divisionismo; espada contra a mediocridade, o carreirismo, o burocratismo e a inércia. A crítica interna protege a disciplina revolucionária e a unidade partidária, princípios sem os quais o Partido deixa de ser vanguarda e passa a ser massa amorfa.

Porém, quando erros internos deixam de ser pontuais e passam a atingir múltiplos coletivos ou estruturas — por desvio de linha, metodologia equivocada, fraqueza organizativa generalizada, falta de estudo etc. —, eles deixam de ser apenas “internos” e se tornam expressão de uma contradição mais ampla, que exige resposta pública. Nesses casos, o Partido deve se pronunciar abertamente, emitir resoluções, publicar autocríticas políticas coletivas, redirecionar sua linha ou suas práticas. Isso é parte da autoridade científica do marxismo-leninismo, que não teme errar, desde que saiba corrigir com coragem e lucidez.

Por fim, é fundamental que os critérios de publicidade da crítica e da autocrítica sejam ensinados a cada militante, não como regra morta, mas como norma viva de conduta política. Cada militante deve aprender a distinguir quando falar e onde falar, quando calar e quando assumir publicamente a posição do Partido. Isso é parte da formação do quadro comunista: o domínio da crítica não como explosão afetiva, mas como instrumento da verdade. E a verdade, como dizia Lênin, é sempre revolucionária — desde que seja integral, histórica e a serviço da transformação do mundo.

A crítica descendente, ascendente e horizontal

Na vida orgânica do Partido Comunista, a crítica não é um privilégio da direção, nem uma concessão eventual à base, tampouco um gesto facultativo entre camaradas — é, antes de tudo, um direito-dever universal, cuja função é assegurar que a unidade partidária não se converta em unanimidade mecânica e que a disciplina consciente não se degenere em passividade acrítica. Para que este mecanismo vital da organização não se perca em formalismos ou distorções individualistas, é necessário compreender que a crítica se exerce em três movimentos interligados: descendente, ascendente e horizontal, cada qual com seu papel próprio, seus riscos e suas potencialidades.

A crítica descendente, proveniente da direção em direção à base, é expressão da responsabilidade política acumulada ao longo de anos de experiência organizativa, e por isso não pode se reduzir a um monólogo autoritário ou a um expediente burocrático de “cobrança de resultados”. Trata-se de uma função formativa e orientadora, na qual a direção traduz para o conjunto do Partido as lições extraídas da luta de classes, sistematiza as orientações estratégicas e corrige desvios que enfraquecem a ação coletiva. Ao realizar a crítica descendente com espírito pedagógico, a direção forma quadros e garante que a base compreenda não apenas “o que fazer”, mas também “por que fazer” e “como fazer”, internalizando, assim, os fundamentos políticos e metodológicos que orientam a ação.

A crítica ascendente, dirigida da base para a direção, é igualmente indispensável, pois constitui o canal pelo qual a direção se mantém enraizada na realidade concreta da luta. Por mais que um Comitê Central ou Estadual concentre experiência e formação, ele não vive todas as frentes simultaneamente; é a base — enraizada nos movimentos de massas, nas fábricas, nos bairros, nas redes digitais, nas lutas da juventude e populares — que capta de forma imediata e sensível as mudanças na temperatura social, as demandas emergentes e as novas contradições provenientes dos interesses de classe e da própria atuação do Partido na realidade. A crítica ascendente, quando feita com rigor, método e lealdade, é uma fonte insubstituível de atualização tática e enriquecimento estratégico, permitindo que a direção traduza em linhas gerais aquilo que surge como particularidade dispersa no cotidiano militante. Nesse sentido, a direção que não se abre à crítica ascendente está condenada a perder contato com a vida real e a repetir esquemas fossilizados.

Aqui se impõe uma consideração crucial: a direção não é infalível e, em determinadas circunstâncias, pode não chegar a consensos entre seus próprios membros por diversos motivos. Longe de ser sinal de fraqueza, esse impasse pode e deve ser transformado em um momento pedagógico de ligação viva com a base. Quando a síntese não é alcançada internamente, o debate desce aos níveis inferiores da organização, para que a base o explore e desenvolva a partir da discussão coletiva, enriquecendo-o com sua própria experiência e perspectiva. Esse movimento descendente e ascendente simultâneo cumpre duas funções: de um lado, mobiliza a inteligência coletiva do Partido, permitindo que a resolução surja da interação entre diferentes níveis organizativos; de outro, fortalece a legitimidade da decisão final, pois esta emerge não apenas da deliberação de um órgão dirigente, mas de um processo coletivo que envolveu a militância em seu conjunto. Assim, a base deixa de ser mera receptora de orientações e se converte em protagonista da elaboração política, enquanto a direção reafirma seu caráter dialógico e não burocrático — esta é a dialética, profunda dialética, da estrutura partidária marxista-leninista.

A crítica horizontal, entre camaradas de um mesmo nível organizativo, é o cimento vivo da unidade de ação, pois previne que os problemas se acumulem até se transformarem em obstáculos maiores. Ela não deve ser confundida com bisbilhotagem, disputa pessoal ou ajuste de contas; é, antes, uma prática cotidiana de correção mútua, pela qual cada militante ajuda o outro a se manter no rumo, evitando que desvios individuais contaminem o trabalho coletivo. Quando exercida com espírito construtivo, a crítica horizontal transforma o coletivo imediato — seja um núcleo, uma célula ou um comitê — em um verdadeiro laboratório de formação revolucionária, no qual todos aprendem a falar e a ouvir com franqueza, e a receber a crítica como oportunidade de crescer.

Mas para que esses três movimentos da crítica mantenham sua função revolucionária, é preciso combater dois desvios simétricos: por um lado, o mutismo oportunista, no qual a base se omite de criticar a direção e os camaradas por medo de “quebrar a unidade”, aceitando tacitamente erros e insuficiências que acabam corroendo a estrutura; por outro lado, o espontaneísmo autodestrutivo, no qual a crítica se converte em descarga emocional ou em projeção de frustrações individuais, sendo dirigida sem método, sem critério, e muitas vezes sem conhecimento real das causas e implicações do problema. O militante recém-chegado, ainda malformado na teoria e na prática do marxismo-leninismo, deve ser educado a entender que criticar não é “dizer o que pensa” no sentido vulgar da expressão, mas sim formular juízos fundamentados no interesse coletivo, na linha política e na análise objetiva da realidade. O Partido molda o indivíduo para que seja um comunista revolucionário; não é o indivíduo que molda o Partido segundo seus caprichos e idiossincrasias.

Por isso, a crítica descendente, ascendente e horizontal forma um circuito dialético que só cumpre sua função se cada militante compreender que sua palavra, sua escuta e sua ação são parte de um todo maior — e que esse todo não é um corpo estranho a ele, mas a expressão organizada de sua própria vontade de transformação. A direção só é forte quando é criticada com lealdade; a base só é madura quando critica para construir; e os pares só se fortalecem quando se corrigem mutuamente com a intenção de elevar, não de humilhar. Assim, a crítica em todas as direções deixa de ser um mecanismo eventual e se torna a respiração permanente do Partido — um fluxo incessante de negação e superação que mantém viva uma chama espiralada de transformações dialéticas dentro do Partido que constrói a revolução socialista.

V. A LUTA CONTRA A CRÍTICA SOFÍSTICA NO PARTIDO COMUNISTA

1. A degeneração da crítica em formalismo, cinismo e vaidade

A história do pensamento humano mostra que nenhuma arma teórica, por mais afiada e precisa que seja, está imune à sua degradação quando se perde de vista o vínculo orgânico entre a forma do raciocínio e a realidade objetiva que ele deve expressar. Assim aconteceu na Grécia antiga, quando o método dialético dos pré-socráticos, nascido como instrumento para descobrir e expor as leis internas da natureza e da sociedade, foi gradualmente capturado pela sofística — essa deformação em que a arte da argumentação se separa do compromisso com a verdade e se converte em técnica para vencer disputas, impressionar plateias ou demonstrar qualquer tese, inclusive o seu contrário, com igual habilidade. O que ali ocorreu não foi mera mutação estilística, mas o sintoma de uma decadência: a dialética, que originalmente servia para penetrar no núcleo contraditório dos fenômenos e desvelar o movimento objetivo do real, foi reduzida à retórica formal, ao jogo de palavras e à exibição de agilidade mental, onde o triunfo na disputa verbal se torna mais importante do que a correspondência com o mundo concreto.

Dentro do Partido Comunista, tal degeneração se manifesta quando a crítica deixa de ser um momento necessário da prática revolucionária — momento voltado à elevação do coletivo e à correção dos rumos — e passa a ser empregada como instrumento de autoafirmação, performance ou vanglória intelectual. É quando a crítica se converte em moeda simbólica: um gesto que, em vez de elevar o conjunto da organização, é orientado para reforçar a posição pessoal de quem a pronuncia, para demarcar status ou suposta superioridade teórica e moral sobre os demais camaradas. Essa inversão, que transforma a crítica de instrumento coletivo em propriedade individual, rompe o elo vital entre conteúdo e forma: o conteúdo — a análise objetiva da realidade e dos erros — é enfraquecido ou mesmo anulado, e a forma — a eloquência, a dureza teatral, a denúncia espetacular — é hipertrofiada e idolatrada como fim em si mesmo.

O resultado inevitável é o formalismo: a crítica se ritualiza, se repete como fórmula vazia, perde a concretude das mediações e se transforma em mecanismo cínico, cuja função oculta é exibir combatividade superficial enquanto, na prática, bloqueia o verdadeiro movimento da autocrítica. É nesse ponto que o Partido começa a reproduzir, em escala interna, o mesmo veneno que a burguesia injeta nas relações sociais: a competição individualista, o narcisismo de pequena corte, a disputa por prestígio descolada do serviço ao povo e à causa marxista-leninista. O sofisma aqui atua como doença infecciosa da dialética: mantém a aparência da forma — a exposição metódica, a enumeração de contradições, a verve “inflexível” — mas esvazia-lhe o conteúdo objetivo, substituindo o critério materialista pelo critério subjetivo, onde a vitória no debate vale mais que a correção do erro ou o avanço da unidade.

Não raro, a sofística se manifesta na persistência obstinada de críticas já respondidas, discutidas e superadas coletivamente. O sofista, incapaz ou desinteressado de confrontar a realidade concreta que refutou seu argumento, retorna a ele como quem insiste numa ferida já cicatrizada, reabrindo-a não para curá-la melhor, mas para exibir o sangue como prova de sua “razão”. É aquele que, após ouvir uma síntese coletiva que abarca sua objeção, tenta minar essa síntese explorando detalhes marginais, ambiguidades inevitáveis de qualquer formulação ou simples lapsos de fala, inflando-os retoricamente até que pareçam questões centrais. Assim, pequenas divergências acidentais ganham proporção de cisma, não pelo peso objetivo que têm no trabalho do Partido, mas pelo peso que lhes é dado na encenação do debate.

Essa conduta não se move pelo critério da verdade material, mas pelo desejo de prevalecer. É o impulso para “ter a última palavra”, para transformar qualquer resposta em trampolim para uma nova acusação ou insinuação. Muitas vezes, o sofista até desloca seu argumento original, reformulando-o sutilmente quando confrontado com os fatos, mas mantendo a aparência de coerência e “profundidade” para não admitir o erro. Ele não busca que a crítica seja superada pela prática coletiva, mas que permaneça como fonte inesgotável de polêmica, pois é dessa polêmica — e não da solução — que extrai sua relevância dentro da organização.

Essa dinâmica é especialmente nociva porque consome energia política em um movimento circular e estéril, desviando a atenção das tarefas objetivas e urgentes. Em vez de concentrar esforços na elaboração de sínteses avançadas e no encaminhamento das contradições para resoluções práticas, a organização é obrigada a gastar tempo rebatendo velhas questões renomeadas, adaptadas ou ampliadas artificialmente. Assim, o sofista converte a crítica — que deveria ser motor de avanço — em freio de mão puxado, arrastando o coletivo para o terreno do imobilismo mascarado de “radicalidade”.

Combatê-lo exige mais do que apontar sua má-fé ou suas distorções. É necessário recolocar todos os debates na relação viva com a realidade objetiva: ligar cada crítica a dados concretos, experiências verificáveis e necessidades políticas reais do momento, de modo que a retórica descolada do real se revele por sua própria esterilidade. Significa criar uma cultura interna em que prestígio e reconhecimento não se construam pela “brilhância” verbal, mas pela contribuição efetiva para o avanço coletivo — uma cultura onde vencer um debate sem resolver um problema não é mérito, mas sintoma de fraqueza política.

É por isso que combater a crítica sofística não é apenas uma questão de “estilo” ou “tom”, mas de essência estratégica: a sofística, ao separar pensamento e realidade, palavra e objeto, introduz no Partido o relativismo e o ceticismo que negam, na prática, a possibilidade de conhecer e transformar o mundo. O sofista interno não se preocupa com a linha política, com a necessidade do momento, com a síntese das contradições reais; preocupa-se com a construção de armadilhas verbais, com a exibição de erudição, com o aplauso ou a intimidação dos presentes. E nesse jogo, o adversário real — a burguesia e seus aparelhos — permanece intocado, enquanto as energias do coletivo se dissipam em disputas de vaidade. E isso vale tanto para direção quanto à base, pois ninguém está imune desta tendência, principalmente os Assistentes em formação.

A luta contra esse fenômeno exige, portanto, mais do que condenação moral; exige reeducação metodológica. Significa restaurar, no cotidiano da crítica e da autocrítica, o vínculo indissolúvel entre forma e conteúdo, entre a análise e a prática, entre a palavra e a realidade objetiva que ela deve expressar. Significa recolocar a crítica no seu leito natural: o de ser não uma arena para a vitória pessoal, mas uma ponte para a vitória coletiva, não uma tribuna para humilhar ou brilhar, mas uma ferramenta para reorganizar, corrigir e impulsionar o trabalho revolucionário. E significa compreender, no nível mais profundo, que a vaidade individual e o prestígio pessoal não apenas corrompem a crítica, mas também corroem o próprio tecido de confiança e unidade que sustenta o Partido como vanguarda da classe operária.

2. A crítica sofística como expressão da má formação filosófica e política

A origem grega da retórica vazia e sua sobrevivência moderna

A sofística, como fenômeno histórico, surge na Grécia clássica quando a dialética — originalmente forjada como método para apreender a essência contraditória dos fenômenos — começa a ser descolada de seu fundamento ontológico e transformada numa técnica verbal voltada a “vencer” discussões. Nesse momento, o diálogo deixa de ser um processo de penetração na realidade objetiva e passa a ser um jogo de prestígio intelectual. A disputa já não é sobre a descoberta das leis do movimento real, mas sobre o domínio formal de palavras, analogias, ambiguidades e paradoxos.

Esse descolamento histórico tem paralelos diretos com certas práticas que se infiltram, consciente ou inconscientemente, dentro dos quadros do Partido quando estes carecem de formação filosófica sólida e, portanto, de domínio real do método dialético. Uma má formação — em que se substitui o estudo rigoroso da história do marxismo-leninismo, da dialética materialista e de suas categorias lógicas pela memorização superficial de fórmulas ou palavras de ordens e consignas — gera um terreno fértil para a degeneração sofística da crítica. Ao invés de análise cumulativa, progressiva e mediada pela totalidade do programa revolucionário, produz-se uma retórica pela retórica: debates onde o conteúdo é secundário e a ênfase recai sobre a habilidade individual de explorar significados subjetivos de palavras ou capturar o interlocutor em contradições meramente verbais.

Assim, reuniões e discussões, que deveriam ser momentos de aprofundamento do pensamento coletivo, acabam girando em torno de disputas superficiais. Sem essa base, o debate se dissolve em interpretações subjetivas e dispersas, e a categoria em discussão deixa de ser examinada como parte de um sistema conceitual historicamente formado.

O Partido, enquanto organização marxista-leninista, não pode permitir que sua linguagem política se fragmente em múltiplos “idiomas” teóricos, moldados ao gosto e à compreensão limitada de cada militante. A língua do Partido é o marxismo-leninismo — não como um jargão morto, mas como um sistema vivo de categorias dialéticas desenvolvidas historicamente e unificadas por um método rigoroso de análise e síntese. Não é necessário reinventar a roda a cada reunião; é necessário, sim, elevar todos os quadros a um patamar em que compreendam a história e o conteúdo dessas categorias, sua genealogia na tradição filosófica, sua apropriação e reelaboração pelo movimento comunista e seu papel concreto na luta de classes contemporânea. E isso não é algo fácil, requer anos de apropriação teórica desses fundamentos, requer que os quadros se apliquem profundamente nesse campo do conhecimento, por isso, deslizes são inevitáveis à medida que essa consciência se forma e se estrutura.

A dialética, enquanto ciência filosófica, possui um aparato conceitual próprio, sedimentado ao longo de milênios de desenvolvimento da filosofia, desde o taoísmo rudimentar, os pré-socráticos até o materialismo histórico. Este aparato não é um conjunto arbitrário de termos, mas a expressão condensada da história do pensamento humano e, ao mesmo tempo, a sistematização mais desenvolvida da experiência histórica das ciências e da prática revolucionária. Como ciência das leis universais do movimento e do desenvolvimento, a dialética é o “resumo de toda a história do conhecimento” — não apenas da filosofia, mas de todas as formas de saber.

Quando um núcleo, célula ou direção perde de vista essa base, as discussões se achatam no plano semântico, e a forma passa a dominar o conteúdo. É a vitória do estilo sobre a substância, da disputa verbal sobre a investigação objetiva, da habilidade individual de oratória sobre a construção coletiva da verdade. Esse é o terreno fértil para o cinismo, para o formalismo e para o uso da crítica como instrumento de distinção pessoal — fenômenos que, como ensina a história da filosofia, sempre antecederam períodos de decadência e fragmentação política.

Restaurar o método marxista-leninista na crítica e na autocrítica significa, portanto, retomar a dialética como ciência das conexões e do movimento da realidade, em que cada conceito é um momento necessário do todo e em que cada debate é uma etapa na construção cumulativa do pensamento coletivo. Somente assim se evita que a crítica se degrade em performance sofística e se preserva sua função essencial: a de ser uma ferramenta de elevação política, ideológica e organizativa do Partido como um todo.

A sofística como sintoma de decadência e a necessidade da disciplina metodológica na crítica

A sofística, na história da filosofia, não foi apenas uma curiosidade teórica ou uma escola marginal; ela representou, em seu tempo, um sintoma concreto de declínio político e cultural. Na Grécia clássica, seu florescimento coincidiu com o desgaste das formas democráticas da pólis ateniense, com a fragmentação do consenso político e com o enfraquecimento da unidade social. A substituição do conteúdo pela forma — o uso da palavra não para buscar a verdade, mas para impor um ponto de vista subjetivo — foi tanto causa quanto consequência dessa decadência. Essa lição histórica não pode ser ignorada pelo Partido Comunista.

A história do movimento comunista oferece exemplos claros de como esse fenômeno foi enfrentado. Na União Soviética sob Lênin, e mais tarde sob Stálin, o Partido combateu duramente o verbalismo estéril e o formalismo acadêmico que tentavam substituir a análise concreta por disputas “escolásticas” de citações e interpretações isoladas. O método bolchevique era claro: todo debate devia estar conectado a uma questão prática da luta de classes, a um problema concreto da construção socialista ou à definição de uma linha política precisa.

Essa disciplina significa que, antes de criticar, é preciso investigar, conhecer a base objetiva do problema, situá-lo no contexto da luta de classes e das contradições específicas que o geraram. Significa também que a forma de expor a crítica deve buscar convencer e elevar o coletivo. E, sobretudo, significa que a crítica deve estar subordinada ao método marxista-leninista, que parte sempre da totalidade concreta e não de fragmentos isolados de realidade ou de interpretações subjetivas.

Quando a crítica perde essa disciplina e se converte em sofística, o que se instala é o relativismo absoluto: cada militante se torna a “medida de todas as coisas”, como no aforismo de Protágoras, e a verdade coletiva é substituída por uma multiplicidade de opiniões individuais em conflito permanente. Isso mina a coesão política, dissolve a linha do Partido e cria um ambiente em que as divergências se resolvem pela força retórica, não pela investigação científica e pelo critério revolucionário.

O combate à sofística, portanto, é inseparável da tarefa de elevar constantemente o nível teórico do Partido, de formar cada militante no método dialético-materialista e de cultivar a autocrítica não como um ritual formal, mas como um instrumento vivo de aperfeiçoamento coletivo. Significa, também, relembrar que a dialética marxista não é um “jeito de falar”, mas uma ciência rigorosa, que exige tanto estudo quanto aplicação prática — e que só cumpre seu papel quando serve para transformar o mundo, e não para acumular vitórias em discussões.

4. Combater o sofismo com formação teórica e organização pedagógica

Assistentes, secretários e controleiros como quadros dialéticos

Entre a direção e a base do Partido se encontram figuras fundamentais para a coesão orgânica: os assistentes, secretários e controleiros. Eles não são simples “mensageiros” que levam resoluções para baixo e relatórios para cima; são, objetivamente, mediadores políticos que precisam ser capazes de compreender e traduzir, de forma dialética, as necessidades do singular e as exigências do todo. De um lado, recebem a pressão direta da base, que atua no calor da luta concreta e vive as contradições imediatas da realidade social. De outro, respondem às orientações e necessidades da direção, que pensa em termos de estratégia global, acumulando e sintetizando múltiplas experiências para orientar a totalidade da luta.

Nesse ponto, se a formação teórica e política do assistente é frágil, o risco de recorrer à sofística como “atalho” para manter o controle aumenta exponencialmente. Em vez de construir pontes reais entre direção e base, recorre-se à retórica vazia, ao expediente de manobrar a forma das reuniões e debates para evitar que surjam contradições “incômodas”. O resultado é a degradação do trabalho político: a base se sente isolada, incapaz de fazer chegar sua experiência à direção, e a direção perde contato com a vida concreta das massas, tornando-se rígida e burocrática.

Essa sofisticação negativa se expressa de múltiplas formas: evitar o aprofundamento dos temas, sobrecarregar pautas com assuntos secundários para “não sobrar tempo” para polêmicas; deslocar o debate para questões inofensivas que desviem do núcleo real dos problemas; rotular divergências legítimas como “imaturidade” ou “unilateralidade”; apelar a frases feitas ou generalismos para sufocar a crítica. Tudo isso não é dialética: é sofisma, uma técnica para preservar o conforto da situação atual sob a aparência de harmonia. O verdadeiro quadro intermediário do Partido, contudo, não pode se dar ao luxo dessa comodidade reacionária. Ele deve ser formado como um quadro dialético, capaz de: Ler a totalidade a partir do singular — identificar no relato de uma célula ou núcleo os elementos essenciais que se conectam às contradições mais amplas do movimento; traduzir o geral para o particular — apresentar as resoluções da direção de modo que se tornem compreensíveis e aplicáveis na realidade concreta da base; enfrentar a crítica com método — não desviando ou abafando conflitos, mas guiando-os até seu amadurecimento e superação, evitando tanto o sectarismo quanto a complacência; promover a elevação da consciência — transformando cada reunião, cada troca de informações, num momento pedagógico de formação política.

Essa postura exige que o assistente deixe de ser um mero administrador e se transforme num educador revolucionário. O burocrata busca gerir contradições como se fossem ruídos a serem abafados; o educador as reconhece como motores do desenvolvimento, buscando orientá-las para uma síntese superior. O burocrata teme o debate, pois nele pode perder o controle; o educador busca o debate, pois nele pode ganhar clareza e coesão. O burocrata limita-se a transmitir ordens e recolher informes; o educador organiza a reflexão coletiva, capacita a base e renova a direção.

Sem essa transformação, o que se instala é um círculo vicioso: a base perde confiança na direção, a direção fecha-se em si mesma, e os assistentes se convertem em amortecedores que abafam — e, assim, perpetuam — as insuficiências de ambos os lados. Romper esse ciclo exige formação teórica rigorosa no marxismo-leninismo, domínio do método dialético-materialista e prática constante de crítica e autocrítica sem subterfúgios retóricos.

A luta contra o sofismo, nesse nível organizativo, é, portanto, inseparável da elevação consciente do papel pedagógico dos quadros intermediários. É somente assim que se forja o assistente que não “cozinha reuniões” para evitar dissensos, mas que as prepara como oficinas de elaboração coletiva; que não teme apresentar à direção as inquietações da base, e que não teme apresentar à base as dificuldades e dilemas reais da direção. Somente assim o Partido pode funcionar como um organismo vivo, onde cada parte nutre e é nutrida pela totalidade — e onde o elo entre base e direção é uma corrente dialética, não um funil de comando cego.

Dentro da vida interna do Partido, a sofística não se expressa apenas como jogo verbal ou manipulação de argumentos. Ela frequentemente se amalgama a um fenômeno ainda mais corrosivo: o exercício dos chamados “micropoderes”, formas localizadas e capilares de autoritarismo que se infiltram no cotidiano da organização. Esse mecanismo, bem descrito pela psicologia como a “síndrome do pequeno poder”, ocorre quando um indivíduo, investido de uma função específica — assistente, secretário, controleiro, ou qualquer outro papel organizativo —, passa a se enxergar não como servidor do coletivo, mas como administrador de um feudo pessoal, interpretando sua atribuição como licença para controlar, coagir ou impor sua vontade acima dos critérios coletivos.

Esses micropoderes não surgem de um vazio moral individual; são produtos objetivos da própria sociedade de classes, que incute nos indivíduos o hábito da hierarquia autoritária, a lógica da obediência cega e a competição por espaços de influência. Quando essas deformações não são combatidas conscientemente, reproduzem-se no interior da organização como miniaturas do poder burguês: pequenas arenas onde a “posição” é usada não para cumprir tarefas e integrar esforços, mas para exercer domínio e marcar distância sobre os demais camaradas.

A sofística, nesse contexto, opera como instrumento de manutenção desses micropoderes. O detentor da “pequena autoridade” frequentemente recorre a artifícios retóricos para legitimar seu domínio: justifica decisões arbitrárias invocando normas sem contexto, interpreta a linha política de forma unilateral para enquadrar opositores, exagera pequenos erros alheios enquanto relativiza os próprios, e utiliza a retórica de “disciplina” e “unidade” como escudo contra qualquer contestação. É a fusão entre o formalismo vazio da argumentação e o autoritarismo miúdo da microgestão.

O resultado é duplamente nocivo: por um lado, o coletivo perde a capacidade de síntese real, pois as contradições são sufocadas antes de amadurecerem em resoluções objetivas; por outro, forma-se um clima interno de temor e ressentimento, que mina a confiança mútua — confiança esta que é o cimento da unidade revolucionária. Um Partido com micropoderes espalhados é como um organismo com pequenos coágulos: pode continuar vivo, mas seu fluxo vital — a crítica e a autocrítica como circulação permanente da consciência — vai se obstruindo até paralisar partes inteiras de sua ação.

A perspectiva marxista-leninista é cristalina nesse ponto: não há cargo ou função que torne alguém insubstituível. A direção, em qualquer nível, existe para servir à base e para articular sua experiência prática com a linha geral do Partido. Quando um assistente, secretário ou controleiro esquece que sua autoridade é delegada e condicionada à utilidade concreta de seu trabalho, e passa a tratá-la como propriedade pessoal, ele já não é um dirigente, mas um obstáculo. É nesse sentido que a crítica interna, quando honesta e fundamentada, é a melhor vacina contra a síndrome do pequeno poder: ela devolve o indivíduo ao terreno da coletividade, lembrando-o de que toda responsabilidade vem acompanhada de responsabilidade perante os outros, e que a função existe para o avanço comum — nunca para a autopreservação do cargo.

O combate a essa tendência exige método. Não basta a denúncia moralista da “vaidade” ou do “autoritarismo”: é preciso criar mecanismos objetivos de rotação de funções, formação política sistemática para todos os quadros e transparência rigorosa nos processos de decisão. Somente assim o Partido mantém vivos dois princípios inseparáveis: que toda função é transitória e que toda pessoa, independentemente do posto que ocupe, está sujeita à crítica, à correção e, se necessário, à substituição. A história do movimento comunista está repleta de exemplos onde o afastamento de dirigentes que acumulavam micropoderes foi condição para o avanço estratégico da luta. E ela ensina algo essencial: nenhuma função, por mais central que pareça, vale mais que a vitalidade política e moral da organização como um todo.

VI. A MORAL, A CRÍTICA E A AUTOCRÍTICA

1. A crítica como processo coletivo de ascensão da consciência

A crítica, compreendida à luz do materialismo dialético, não é o gesto isolado de um indivíduo “denunciando” o erro alheio, nem um tribunal moral que condena ou absolve segundo padrões externos à realidade objetiva; ela é, antes de tudo, um processo coletivo de elaboração da verdade, uma ferramenta pela qual o Partido e as massas se conhecem a si mesmos, reconstroem-se e acendem a patamares mais elevados de consciência. Quando conduzida de forma correta, a crítica é inseparável de sua irmã gêmea, a autocrítica, e ambas se alimentam de um mesmo impulso construtivo: não destruir o sujeito ou o coletivo que errou, mas fortalecer sua capacidade de intervir de forma mais consequente na luta de classes.

Esse movimento não é linear nem “progressivo” no sentido vulgar; tal como no velho pensamento dialético rudimentar taoísta, a vida da organização é fluxo constante de acertos e erros, de forças e fraquezas, de unidade e contradição, onde cada momento negativo — se assumido conscientemente — se transforma em impulso positivo para um salto qualitativo. É precisamente nesse sentido que nos afastamos de toda a superstição moral herdada da teologia cristã, onde o erro é pecado, imundice herdada das mulheres, impureza, desvio de um ideal de pureza e perfeição. A lógica cristã de culpa e expiação, impregnada de subjetivismo moral, é completamente incompatível com a prática bolchevique: no Partido, o erro é um fato objetivo do movimento, expressão de contradições reais, e sua superação não depende de arrependimento ritual, mas de transformação consciente da prática e da teoria.

Porém, a vida do Partido nem pode ser reduzido à mecânica sucessão de opostos, como se a vida da organização fosse mero jogo de troca de lugares entre o “acerto e o erro”, o “forte e o fraco”, a “unidade e a contradição” — concepção esta que, herdada do antigo pensamento taoísta e reproduzida em formulações posteriores como o maoísmo, enxerga apenas o lado externo e formal da relação entre contrários. O verdadeiro movimento dialético que interessa ao Partido não é circular e fechado, mas espiralado e ascendente: cada oposição, cada momento de tensão interna, cada insuficiência descoberta e assumida conscientemente não retorna ao ponto de partida, mas se integra, transformada, ao nível seguinte do desenvolvimento coletivo.

Na interpretação puramente externa, própria de certas filosofias orientais e de versões mecanicistas da “dialética”, a mudança é concebida como simples inversão — o dia tornando-se noite, a paz tornando-se guerra, o oprimido tornando-se opressor — sem apreender o núcleo interno que, na luta entre os contrários, engendra algo novo, que não existia antes. É o mesmo reducionismo que leva a imaginar que o proletariado, ao tomar o poder, se “transformará” na burguesia, ou que a unidade interna de um Partido revolucionário deva necessariamente “degenerar” em divisões e rachas — como se a história fosse um pêndulo inevitável e não um campo de intervenção consciente.

Ao contrário, a dialética marxista, fundada na análise histórico-concreta, vê a luta de contrários como processo de fusão e superação, em que a contradição não se resolve por mera alternância, mas por incorporação e negação das formas anteriores, dando origem a um novo patamar de desenvolvimento. É a lei da negação da negação em ação: o erro, uma vez compreendido e criticado, não retorna simplesmente ao “acerto” original, mas se transforma em força consciente, dotada de memória e método, capaz de impedir a repetição mecânica do mesmo erro e de ampliar a eficácia coletiva.

Assim, a vida da organização não é um círculo repetitivo de “ganhos e perdas”, mas um contínuo autoaperfeiçoamento, em que cada momento negativo, assumido sem medo e com método, se converte em combustível para saltos qualitativos. Essa concepção é incompatível com qualquer visão fatalista ou mística das contradições; ela exige disciplina teórica, rigor na crítica e autocrítica e confiança na capacidade das massas e do Partido de intervir, transformar e elevar-se a cada ciclo. É nesse sentido que o marxismo-leninismo supera as concepções circulares e mecânicas do movimento, enraizando o conhecimento no próprio desenvolvimento social e político, e não em analogias externas ou esquemas fixos.

2. O papel da crítica na luta contra a deificação do Partido

O Partido, sendo a forma superior de organização política da classe operária, não está imune a tendências oportunistas, burocráticas ou dogmáticas. Pelo contrário, por ser um organismo vivo em constante relação com as massas e com a luta de classes, ele está permanentemente exposto à pressão ideológica da burguesia, à inércia dos costumes herdados e à tentação de se acomodar nos métodos que já funcionaram no passado, mas que se tornaram insuficientes para as condições presentes. É precisamente aqui que a crítica — interna e pública, em seus canais próprios e sob controle consciente — desempenha papel decisivo para detectar, analisar e corrigir essas tendências antes que se cristalizem em desvios.

Do mesmo modo, a crítica é arma essencial no combate às frações desviacionistas, aquelas que, sob pretexto de “inovar ou corrigir” a linha, buscam, na prática, substituir a estratégia proletária por agendas alheias à luta de classes. A crítica, quando feita com rigor dialético e espírito de unidade, permite isolar e derrotar tais desvios sem cair no personalismo ou no moralismo, mas mantendo o centro na luta entre linhas e no fortalecimento da disciplina consciente. Assim, ela não é um instrumento de divisão, mas de unificação — não no sentido mecânico de sufocar divergências, mas no sentido dialético de transformar a divergência em seu suprassumo.

Porém, para que isso aconteça, é necessário combater de frente uma das manifestações mais perigosas da incompreensão da dialética: a desilusão política diante dos erros inevitáveis de uma organização viva.

Quantos militantes, honestos e até disciplinados, não se deixam paralisar pela expectativa idealista — herdada, em última instância, da moral cristã — de que o Partido deveria ser perfeito, abençoado por uma suposta graça divina da infalibilidade? Quantos não esperam, conscientemente ou não, um Partido acabado, pronto, deificado em sua forma, que nunca tropece, nunca se atrase, nunca erre de tática ou cometa equívocos de avaliação, inclusive coletivas? Esse é o mesmo espírito de uma fé religiosa transposto para a política: o Partido como ídolo, não como instrumento de luta de uma classe real, feita de homens e mulheres reais, com virtudes e limitações.

A dialética materialista exige compreender que o Partido é feito de relações humanas inseridas em condições históricas concretas — e, portanto, erra, se engana, recua, teima, às vezes age de forma insuficiente ou precipitada. Mas é também por essa mesma razão que ele aprende, avança e se supera. Abandonar o Partido diante de um erro honesto — sobretudo quando se trata de divergências de tática em casos particulares — é desistir de intervir no seu curso e deixá-lo à mercê daqueles que de fato querem deformá-lo, corrompê-lo ou destruí-lo.

Os militantes que, por pessimismo ou frustração, saem do Partido sem lutar ou se deixando vencer pelo cansaço, entregam terreno livre aos oportunistas, carreiristas e revisionistas que preferem um Partido fraco, fragmentado e vazio de quadros combativos. Por isso, a defesa do Partido não significa acobertar seus erros, mas defendê-lo de sua negação como instrumento histórico da classe operária. Mesmo afastado circunstancialmente ou expulso por engano, o militante de fibra sabe que este é o seu Partido, e o protege como quem protege um bem inalienável de sua própria classe, pois sabe que, sem ele, a revolução se torna impossível.

A dialética nos ensina que não existe organização revolucionária pronta antes da própria revolução; ela se forja na luta, se educa com a prática, se purifica pela crítica, se fortalece pela autocrítica e se eleva através da superação consciente de suas próprias contradições internas. Desistir dela em nome de uma pureza imaginária é, na prática, capitular à lógica dos inimigos de classe, que apostam justamente na dispersão e no desalento dos melhores combatentes. É por isso que nossa moral proletária não é um código de perfeição, mas um compromisso inquebrantável com o processo histórico que nos liga à classe operária e à revolução socialista, é uma transformação permanente.

3. Crítica e autocrítica e a nova moral proletária

Na direção proletária, a crítica e a autocrítica não são recursos eventuais, acionados apenas em “crises” ou “erros graves”; são método permanente de formação moral, ética e intelectual dos quadros, desde o militante mais novo até o dirigente mais experiente. É nesse exercício constante que se forja o bolchevique como figura integral: não como um “puro” que nunca erra, mas como alguém que sabe transformar cada insuficiência em aprendizado, cada derrota parcial em avanço estratégico.

A Nova Moral Proletária, por mais avançada e revolucionária que seja, não é — nem pode ser — critério absoluto e imutável de análise crítica, afinal a moral continua sendo um terreno arenoso da própria moral, e não método rigoroso de investigação científica das contradições reais, humanas e naturais, da realidade brasileira e mundial como é a dialética. Assim, justamente por se basear na dialética materialista, ela reconhece que toda norma, todo padrão ético, é histórico e transitório, determinado pelo nível de desenvolvimento da luta e pelo estado atual das forças produtivas, relações de produção, ciência e da cultura. Por isso, o bolchevique não se deixa guiar por um código de conduta fixo e moralizante, mas pelo método de análise concreta da realidade concreta, capaz de avaliar cada situação não à luz de um ideal abstrato, mas da necessidade objetiva do movimento.

É aqui que devemos identificar e combater um vício recorrente: o moralismo como método de crítica. Tal como a sofística degenerou a dialética pré-socrática em exibição de acrobacias lógicas, o moralismo reduz o método revolucionário a uma coreografia de juízos de valor, onde o essencial não é compreender o erro para superá-lo, mas “flagrar e condenar” o infrator segundo um código arbitrário, muitas vezes herdado de concepções alheias ao marxismo. O moralista, tal como o sofista, pouco se interessa pelo objeto real da crítica, pelas contradições concretas que engendraram a insuficiência; seu objetivo é produzir um efeito — seja o aplauso da plateia, seja o sentimento de superioridade pessoal — através de frases de efeito, indignações performáticas e comparações simplistas. É o “circo ético”: malabarismos com conceitos genéricos, hipocrisia egóica com delírio de grandeza e apelos ao “óbvio”, lançados como bolas de fogo no ar, mas sem nunca tocar o chão firme da análise materialista.

Esse formalismo moralista, assim como a retórica vazia dos sofistas, pode até impressionar os desavisados e criar a ilusão de profundidade, mas é estéril para o trabalho revolucionário. Em vez de abrir caminho para a autocrítica e a retificação, fecha-se no beco sem saída de categorias morais absolutizadas, que congelam o indivíduo no erro e impedem que a contradição seja resolvida no plano coletivo. O bolchevique, ao contrário, sabe que a moral proletária não é um tribunal eterno acima da história, mas o reflexo, em determinado momento, das necessidades e possibilidades objetivas da luta. Seu critério último não é “o que parece certo” ou “o que soa bem”, mas o que efetivamente eleva o nível de consciência e de organização do Partido e das massas.

A crítica, nesse sentido, é também expressão da confiança do povo no Partido. O trabalhador, o camponês, o jovem que se dispõe a criticar, o faz não porque deseja destruir, mas porque acredita que sua organização é capaz de mudar e melhorar. O Partido que teme a crítica, que a evita ou a sufoca, não apenas trai sua própria essência, mas também corta o fio invisível que o liga às massas. Um Partido que educa, estimula e organiza a crítica, ao contrário, fortalece esse fio, transforma-o em cabo de aço e constrói, passo a passo, uma unidade consciente e indestrutível entre vanguarda e classe.

Assim, compreender a crítica como processo coletivo, arma contra o oportunismo e método de direção não é uma questão de “boas práticas” organizativas, mas de essência revolucionária. É a diferença entre o Partido como máquina burocrática de reprodução de si mesmo e o Partido como escola viva da autoeducação das massas, capaz de conduzir não apenas lutas imediatas, mas o próprio processo histórico de emancipação social.

4. A diferença entre a nova moral proletária e a antiga moral cristã

A defesa consequente do Partido exige compreender que nossa moral proletária não é — e jamais será — uma moral de pureza imaculada, à maneira cristã. A moral cristã, moldada ao longo de séculos para preservar a submissão e a resignação, parte do pressuposto de que existe um modelo perfeito e intangível diante do qual todo ser humano é, por essência, culpado, pecador e insuficiente. Qualquer deslize, qualquer falha, torna-se “pecado” e, como tal, deve ser expiado com penitência, humilhação e afastamento. Essa lógica moral, transposta para a política, produz militantes que só concebem a organização como legítima se esta estiver “sem manchas” e “sem máculas” — e que, ao primeiro tropeço, sentem-se traídos, decepcionados e, por fim, abandonam a luta.

A moral proletária, ao contrário, nasce do materialismo histórico e da dialética. Ela não exige pureza inatingível, mas compromisso consciente com um processo real, feito de acertos e erros, vitórias e derrotas, avanços e recuos. No método dialético, o erro é contradição viva, elemento real de um processo de suprassumo. Ele não se expia com culpa, mas se corrige com prática; não se lava com lágrimas, mas se resolve com método, análise e prática transformadora.

É justamente por isso que o militante bolchevique não se deixa levar pela desilusão passiva — aquela que, decepcionada, prefere se retirar para a torre de marfim da crítica exterior, deixando o campo livre aos carreiristas e aos inimigos internos. Nosso papel não é fugir diante da falha, mas enfrentá-la, corrigindo-a no seio da própria organização. Se o Partido erra honestamente, o dever é lutar dentro dele para que o acerto venha, não o abandonar como se fosse um navio condenado.

Quem compreende a natureza histórica do Partido sabe que ele não é obra de um deus infalível, mas da classe operária organizada — e, por isso mesmo, carrega todas as marcas de sua humanidade e de sua historicidade. É essa compreensão que nos arma contra o pessimismo e contra o abandono: acertando ou errando, este é o nosso Partido, o único instrumento histórico capaz de dirigir a revolução socialista. Guardá-lo e defendê-lo, mesmo fora dele, mesmo nas horas mais amargas, é dever que se cumpre não por devoção cega, mas por clareza estratégica.

Assim, a crítica proletária rompe com a moral da perfeição imaculada e assume a moral da superação permanente: não adoramos uma estátua inerte de pureza — o imobilismo é o peso morto da história, mas forjamos uma organização viva, contraditória, em movimento ascendente.

VII. CONCLUSÃO

Sem crítica e autocrítica, não há revolução!

O Partido Comunista, se quiser manter-se como vanguarda real da classe operária, não pode contentar-se com a repetição inerte de fórmulas ou com a manutenção burocrática de sua estrutura. Um Partido que não pratica a crítica e a autocrítica — de forma científica, dialética e profundamente vinculada à realidade objetiva — inevitavelmente se cristaliza, perde o contato vivo com as massas e, finalmente, degenera. A crítica e a autocrítica não são rituais formais, mas o ar respirável da organização revolucionária; são o processo pelo qual as contradições internas se resolvem em níveis mais altos, transformando cada limitação identificada em possibilidade concreta de avanço.

O maior risco que corremos é deixar que a crítica se converta em expediente burocrático — reduzida a fórmulas secas, a julgamentos formais, a relatórios padronizados que nada transformam. Tal “crítica” não educa, não reorganiza, não emancipa: apenas repete a forma vazia da dialética, enquanto esconde ou distorce seu conteúdo. Em contraste, a crítica pedagógica é aquela que parte da compreensão de que cada erro contém em si a semente de sua própria superação, desde que analisado com método e transmitido com clareza. Ela não visa humilhar, mas elevar; não quebra a confiança entre os camaradas, mas a reforça pela demonstração concreta de que é possível corrigir o curso sem destruir o sujeito coletivo que o conduz.

Um Partido marxista-leninista não é uma máquina fria nem um templo sagrado: é um organismo vivo, feito de homens e mulheres em luta, e por isso mesmo sujeito a todas as contradições que movem a história, todas. Sua força não reside na ausência de erros, mas na capacidade de aprender com eles mais rapidamente do que seus inimigos; não na ausência de conflitos internos, mas na habilidade de resolvê-los de modo que a unidade se torne mais sólida e consciente a cada etapa. Tal como um corpo vivo, o Partido cresce, adapta-se, renova suas células e fortalece seus músculos pelo exercício constante da crítica e da autocrítica como um método de direção e de autoconstrução.

Assim, reafirmamos: a crítica e a autocrítica são a expressão mais alta da confiança da classe operária em si mesma e na sua vanguarda organizada. São o motor interno da revolução, o antídoto contra o dogmatismo e o oportunismo, o instrumento pelo qual o Partido mantém sua ligação orgânica com as massas e consigo mesmo. Renunciar a elas é renunciar à própria possibilidade de transformação revolucionária. Mantê-las vivas e corretas é garantir que, em cada nova etapa, o Partido seja capaz de transformar o mundo — e, ao transformá-lo, transformar-se a si próprio.

Crítica e autocrítica, o ser humano e o Partido Comunista

Se percorremos aqui a longa e tortuosa estrada das concepções do erro — desde sua codificação mítica até sua fetichização tecnocrática, desde o castigo religioso até o erro funcional, desde a circularidade cosmológica até a moral do pecado — foi para compreender que nenhuma dessas formas, por mais sofisticadas que tenham sido em seu tempo, soube resolver a contradição entre o erro e a verdade como expressão da prática histórica coletiva. Porque todas, sem exceção, repousavam sobre a separação entre sujeito e objeto, entre forma e conteúdo, entre massa e direção, entre saber e fazer.

Foi apenas com o surgimento do marxismo-leninismo — como salto qualitativo da filosofia à política revolucionária — que se tornou possível fundir em uma mesma estrutura teórica e organizativa a verdade como conquista coletiva, o erro como momento da contradição, a crítica como forma da luta, e a autocrítica como negação consciente das formas caducas da prática. Aqui, e só aqui, o erro deixa de ser culpa, falha ou punição remediados pelo perdão e a desculpa, e se transforma em instrumento de superação. A crítica deixa de ser tribunal, e se converte em escola; a autocrítica deixa de ser penitência, e se transforma em síntese.

Mas para que essa transformação se realize plenamente — para que o Partido seja, não apenas em palavras, mas em movimento real, a vanguarda consciente e organizada do proletariado — é preciso mais do que citar Marx, mais do que repetir fórmulas de Lênin, mais do que evocar Stálin ou Enver Hoxha como amuletos. É preciso reproduzir, nas condições concretas da luta atual, o método vivo que esses camaradas nos legaram: o de uma crítica que educa e organiza, o de uma autocrítica que reorienta e fortalece, o de uma organização que não teme o erro porque sabe superá-lo, e que não esconde as falhas porque sabe transformá-las em energia histórica.

E essa tarefa — esta prática concreta da crítica e da autocrítica como pulsação permanente da consciência revolucionária — não pode ser monopolizada pelo centro, nem ser reduzida ao exercício dos quadros dirigentes. A base é o lugar onde a contradição se apresenta de forma viva, onde o conflito entre linha e realidade se encarna nos fatos e nas massas, nas oficinas, nos bairros, nas salas de aula, nas greves, nos conselhos, nos assentamentos e ocupações. É aí que a verdade nasce — ou perece. É ali que o erro aparece — ou se perpetua. Portanto, é à base, e não ao centro, que cabe a primeira e a última palavra na produção da linha correta.

Mas isso não significa autonomia liberal, nem espontaneísmo. Significa, ao contrário, que a unidade do Partido — sua linha justa, sua estratégia revolucionária, sua moral de aço — só pode emergir de uma dialética permanente entre direção e base, entre a centralidade política e a multiplicidade das experiências, entre a clareza teórica e a complexidade da realidade. Cabe ao centro indicar a direção geral da marcha; cabe à base discernir o caminho. Cabe ao centro sistematizar o acúmulo; cabe à base testá-lo, validá-lo, corrigi-lo. E cabe a ambos — centro e base, dirigentes e militantes, células e comitês — agir com coragem e responsabilidade revolucionária quando as direções se equivocam, quando as palavras se distanciam da prática, quando a linha se petrifica em forma.

Por isso, a crítica, se for verdadeira, é sempre uma crítica do centro — feita desde a base, com método, com espírito de elevação, com firmeza e sem medo. E a autocrítica, se for revolucionária, é sempre uma reconciliação da direção com as massas — não como submissão, mas como reencontro.

É nesse sentido que o Partido se organiza como organismo vivo: não uma pirâmide de ordens, mas uma espiral de consciência. Cada célula é o cérebro e o coração do Partido. Cada erro, um passo para o acerto. Cada crítica, uma centelha de superação. E é nessa respiração — feita de tensões, de contradições, de rupturas e de sínteses — que o Partido permanece revolucionário. Quando essa respiração cessa, quando o medo paralisa a crítica, quando o dogma substitui a dúvida, quando o orgulho mata a escuta, então o Partido adoece.

Nosso dever, portanto, não é escrever manuais de como, onde e quando criticar — pois este manual fossilizaria o que a dialética, no futuro, questionaria através da necessidade real. Nosso dever não é oferecer receitas prontas — pois cada base, cada território, cada frente de luta deve encontrar, por sua própria prática, as mediações concretas entre a linha geral e as particularidades da luta. O que nos cabe é oferecer bússolas, não mapas; métodos, não decretos; espírito, não fórmulas. E é exatamente isso que este texto pretende ser: um chamado à elevação consciente e coletiva da crítica e da autocrítica à altura de nossa tarefa histórica.

Revolucionar o mundo é impossível sem revolucionar o Partido. E revolucionar o Partido é impossível sem revolucionar a consciência dos seus militantes. E essa consciência — como já ensinava Marx e Engels — não nasce da contemplação, mas da prática. E como já ensinava Lênin, Stálin e Enver — não avança sem organização, não se fortalece sem autocrítica, não se corrige sem o impulso ativo da base. Por isso, toda crítica verdadeira é também organização; toda autocrítica viva é também coragem; e todo Partido que se quer comunista deve ser, acima de tudo, um espaço onde a verdade possa ser dita, onde o erro possa ser enfrentado, e onde a revolução possa nascer, de novo, todos os dias.

E afinal, se aqui falamos de crítica e autocrítica, de erro e de verdade, de Partido e de Revolução, é porque antes de tudo falamos de nós mesmos — desta estranha e maravilhosa criatura que é o ser humano. Ser que, ao mesmo tempo, constrói e destrói, que chora e canta, que se perde e se reencontra, que tropeça e, ainda ferido, inventa novos caminhos. Ser feito de carne e sonho, de trabalho e poesia, de suor e memória, de lágrimas e de riso.

É verdade: nossa história é marcada por guerras, opressões, violências, explorações, massacres e injustiças que fazem tremer a consciência. Mas é igualmente verdade que, entre essas sombras, o ser humano ergueu cidades e músicas, navegou mares e imaginou mundos, pintou cavernas e escreveu epopeias, amou e cuidou, inventou ciência e forjou o aço, sem nunca se contentar com o que já era. Porque há, na essência histórica do ser humano, um ímpeto que não se dobra: o desejo de superar-se.

E é essa sede de superação que, em meio às contradições mais dolorosas, nos deu os momentos mais luminosos da nossa existência: a Comuna de Paris, a Revolução de Outubro, as batalhas da resistência antifascista, o nascimento de cada novo estado socialista, o camponês que alfabetiza o vizinho, a operária que organiza a greve, o estudante que se levanta contra a injustiça, o poeta que canta a vida.

Entre os trabalhadores brasileiros — filhos e filhas de séculos de escravidão, expropriação e humilhação — este ímpeto é ainda mais tenaz: homens e mulheres que, no campo e na cidade, carregam nas costas o peso do mundo e ainda encontram força para sorrir, ajudar, ensinar, criar. Trabalhadores que, mesmo esmagados pelo capital, conservam dentro de si a centelha da humanidade mais pura — a de não se conformar.

E dentre esses filhos do povo, há aqueles que ousam ir além da indignação, que constroem uma têmpera especial: os comunistas, os marxista-leninistas. Aqueles que não se contentam em sonhar com um mundo justo, mas se organizam para conquistá-lo. Aqueles que, mesmo errando, erram tentando acertar; que, mesmo caindo, caem tentando avançar; que, mesmo cercados, lutam tentando romper o cerco.

Porque o comunista é, acima de tudo, um ser humano que se recusa a aceitar que a beleza do mundo seja sufocada pela miséria, que a alegria da vida seja esmagada pela mercadoria, que o amor entre iguais seja substituído pela competição. Ele sabe que errará — mas sabe também que cada erro, se enfrentado com honestidade e com método, é um passo para o acerto. E que o acerto, quando vem, não é individual, mas coletivo; não é triunfo pessoal, mas vitória da classe, vitória da humanidade.

Por isso, nossa tarefa não é apenas lutar pelo socialismo como sistema econômico e político — é lutar para que o ser humano possa finalmente ser tudo o que é capaz de ser, ser um homem novo, uma mulher nova. Para que a vida não seja apenas sobrevivência, mas criação, descoberta, ternura, solidariedade. Para que possamos viver como quem ama viver.

Que este singelo ensaio, histórico e filosófico, seja uma forma para lembrar a cada militante que o comunismo não é apenas uma doutrina, uma linha ou um programa — é a forma mais elevada do amor humano: o amor por um mundo onde todos possam florescer.

Porque, no fim, toda crítica e toda autocrítica, todo erro e toda verdade, toda luta e toda revolução, se justificam por isso: a crença inabalável de que o ser humano merece — e pode — viver como nunca viveu antes.

BIBLIOGRAFIA

Fontes diretas

·       BRECHT, Bertolt. Poemas. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Editora 34, 2000.

·       ENGELS, Friedrich. Anti-Dühring. São Paulo: Boitempo, 2015.

·       ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza. São Paulo: Boitempo, 2020.

·       HOXHA, Enver. O Imperialismo e a Revolução. Tirana: 8 Nëntori, 1978.

·       HOXHA, Enver. Relatórios e Discursos. Tirana: 8 Nëntori, 1980.

·       ILENKOV, Evald Vasilyevich. A Dialética Antiga como Forma de Pensamento. Moscou: Progresso, 1982.

·       ILENKOV, Evald Vasilyevich. Leninist Dialectics and the Metaphysics of Positivism. Moscou: Progresso, 1984.

·       LÊNIN, Vladimir Ilitch. Carta a Gorki (1919). In: Obras Escolhidas. Moscou: Progresso, 1980. v. 3.

·       LÊNIN, Vladimir Ilitch. Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática. Moscou: Progresso, 1975.

·       LÊNIN, Vladimir Ilitch. Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo. São Paulo: Global Editora, 1980.

·       LÊNIN, Vladimir Ilitch. Que Fazer? Problemas Candentes do Nosso Movimento. São Paulo: Editora Hucitec, 1988.

·       LÊNIN, Vladimir Ilitch. Relatório ao 3º Congresso da Internacional Comunista (1921). Moscou: Progresso, 1981.

·       MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2010.

·       MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

·       MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

·       STÁLIN, Josef. Fundamentos do Leninismo. Recife: Edições Manoel Lisboa, 2014.

·       STÁLIN, Josef. Informe Político ao 16º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (1930). Moscou: Progresso, 1930.

·       TORÁ. Pentateuco. Tradução da Bíblia Hebraica por João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.

·       BÍBLIA SAGRADA. Evangelho de Lucas. Tradução João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009.

Leituras complementares

·       ARISTÓTELES. Organon. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2014.

·       BOYCE, Mary. Zoroastrians: Their Religious Beliefs and Practices. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1979.

·       GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

·       HEGEL, G. W. F. Ciência da Lógica. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2016.

·       HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2014.

·       HERÁCLITO. Fragmentos. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

·       PLATÃO. Diálogos: República, Sofista, Parmênides. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2000.

·       ZOROASTRO. O Zend-Avesta. Trad. Anquetil-Duperron. Paris: Ernest Leroux, 1892.

Materiais históricos e antropológicos complementares de referência indireta

·       ASSMANN, Jan. Maat: Gerechtigkeit und Unsterblichkeit im Alten Ägypten. Munique: C.H. Beck, 1990.

·       AVESTA, Zoroastro. Zend-Avesta: The Sacred Texts of Zoroastrianism. Trad. James Darmesteter. Oxford: Clarendon Press, 1880.

·       BERNAND, Carmen; GRUZINSKI, Serge. História do Novo Mundo – As Trocas Culturais. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

·       CLASTRES, Pierre. A Sociedade Contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

·       CONFÚCIO. Analectos. Trad. André Bueno. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

·       DIDEROT, Denis. Enciclopédia: Discursos Preliminares. São Paulo: Editora Unesp, 2015.

·       KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

·       KRAMER, Samuel Noah. A História Começa na Suméria. São Paulo: Perspectiva, 2003.

·       LAO-TSE. Tao Te Ching. Trad. Huberto Rohden. São Paulo: Martin Claret, 2010.

·       LEICK, Gwendolyn. Mesopotamia: The Invention of the City. Londres: Penguin, 2002.

·       LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Filosofia Náhuatl: Estudo das Fontes. México: UNAM, 1959.

·       MURRA, John V. Formaciones Económicas y Políticas del Mundo Andino. Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 1975.

·       VOLTAIRE. Dicionário Filosófico. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.

·       ZIMMER, Heinrich. Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 2001.